21 de novembro de 2025

O sonho esculpido

Márcio Simeone
Cadeira n.º 8

Na solidão do meu ateliê, tenho diante de mim um bloco inerte de mármore. Como sempre faço, deixo primeiro que fale comigo. Fico a escutá-lo horas a fio, com paciência, e a admirar sua alva superfície, com veios de cinza que nela desenham com suavidade toda uma história da terra, as recordações pétreas das montanhas e, por que não dizer, das vagarosas mudanças geológicas através das muitas eras de formação. Uma bela rocha como esta, já tem valor por sua mera existência mineral e milenar, uma criatura ancestral que é obra-prima dos tempos. Foi arrancada do seio da terra. Já não é mais a própria pedra, mas matéria bruta deslocada, cortada e aparada, em busca de seu sentido. Agora fico ali, absorto e reverente, a buscar desvendar sua vontade e seu destino. Por vezes me demoro em compreender o que me mostra e o que me esconde, e em adivinhar o que nela está adormecido, mas espero o momento exato de revelação, que é aquele onde os desejos deste bloco, em sua singular beleza, se encontram com os meus. É a hora de uma mágica inspiração mútua, onde transcendemos nossa materialidade. No meu breve transe, esculpi pela imaginação neste mármore os meus sonhos. Estes ganham volume e beleza, em pensamentos leves que vão dando um delicado relevo e contornos de eternidade às nossas almas. Então, é hora de tomar do cinzel e trabalhar a forma libertadora. Conforme se despregam os fragmentos, vai-se liberando a alma aprisionada bem nas entranhas do mármore e uma imagem vai se figurando alegre entre os meus dedos. Este bloco agora está quieto. Deixa-se apenas mostrar, transfigurando-se, lentamente. Também eu me calo e, determinado, deixo-me fundir em experiência àquela imagem sonhada em comum. Assim, enlevado, entro em novo estado, no qual meu corpo se dilui no ato que executo. Neste novo transe, já não sei mais se estou a esculpir a pedra ou se ela é que está a me moldar. Nem me importo. Já estou sonhando nela! A obra, uma vez acabada, é um monumento de mim mesmo, memorial e onírico. Não é uma escultura estática, mas um mapa sem peso algum, capaz de dançar livre, solta no espaço. Para você, não é uma obra silenciosa, mas uma contadora de histórias, que diz de uma alma que se reconverte em matéria e de uma aventura íntima que conecta as mãos à mente, a mente à terra e a terra ao cosmos.

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Imagem: criada por IA generativa 

2 de novembro de 2025

A hora e a vez de Constança

Geraldo Phonteboa
Cadeira n.º 14

Hoje apresento a vocês a história de Constança. Uma mulher preta, escravizada, que afirma que não havia sido matriculada, conforme determinava a Lei de 1871 - que é a lei do Ventre Livre. E para ela o seu Senhor não havia feito tal matrícula. Nesse sentido, a petição inicial é muito simples, objetiva e direta. Ou seja, não há nenhum outro argumento. Somente isso, não foi matriculada pelo seu senhor e, portanto, teria o "direito" à liberdade.

Em todo caso o Juiz Municipal, aceita a petição e nomeia um Curador e um depositário. E o processo se inicia. Em seguida o Juiz Manoel Joaquim Cavalcanti de Albuquerque, solicita a verificação através do livro de matrícula do município. E ao fazer isso, vem a surpresa: Francisco Alves da Cunha, apontado como Réu no processo, isso porque Constança estava sob o domínio deste senhor., não era de fato senhor de Constança, pelo menos não era isso encontrado no livro de Matrícula de Escravos do Município. O Verdadeiro dono de Constança era outro. Veja a Certidão de Matrícula:

Diante das informações desta certidão, o Juiz não tinha muito o que fazer, a não ser suspender tanto o depósito, bem como a curatela de Constança, para depois encerrar o processo. Então expede o mandato para que os oficiais de justiça ir até a casa do depositário buscar a escrava e entregá-la ao seu verdadeiro dono. E isso acontece. O oficial de Justiça vai até o distrito de Mateus Leme, em casa do curador, buscar a escravizada Constança. E ela não se encontrava na casa do depositário, mas que estava em sua propriedade na Fazenda da Sesmaria, naquele distrito. Chegando à fazenda, o depositário rejeita a entrega de Constança, por ela já ser livre, pois já havia recebido "Carta de Liberdade", que ela, Constança, havia dado ao seu senhor, José Nunes da Costa, por esta liberdade.

Os oficiais de Justiça retornam ao Juiz e informa a situação. O Juiz não aceita aquela situação e envia novamente os oficiais, até à Fazenda Sesmaria para trazer a escravizada, e que apresente a carta de liberdade. Novamente o depositário recusa entregar Constança aos oficiais, alegando que não poderia entregar "pessoa livre" contra a vontade dela.  Informa também aos oficiais que ele não tinha em seu poder a referida "Carta de Liberdade". 

Diante desta informação, o Juiz faz intimação ao depositário e ao Curador para apresentar em audiência o documento que garantia a liberdade de Constança, sob as pena da Lei. E então, em 04 de agosto de 1887, em audiência pública, a Carta de Liberdade de Constança é apresentada ao juiz. Que após verificada a veracidade da mesma, declara Constança como mulher livre. Mas, por que a relutância em apresentar esta carta por parte do depositário? Por que ele resistiu tanto entregar esta carta ou apresentá-la ao juiz? E a resposta está na própria carta. A carta de liberdade foi passada em 21 de julho de 1882, 5 anos antes de Constância entrar na justiça. Ou seja, esta demora do depositário em entregar a carta e até mesmo devolver Constância ao seu dono estava no fato de que ele tinha intenções em continuar explorando o trabalho de Constança. Ele já era livre, mas estava em sua fazenda, prestando algum tipo de serviço. E foi por isso também que o Réu no Processo, Francisco Alves da Cunha, também não podia matriculá-la, pois se poderia descobrir que ela já era livre. Era conveniente para os senhores tentar encobrir esta situação. 

Dá para imaginar que muitos escravizados, mesmo já com a carta de alforria, não tinha garantias de sua liberdade, sendo preciso recorrer à justiça para conseguir, de fato, ser livre, e muitos escravizados não saberia como fazer isso. Constança torna-se assim um exemplo de como a informação pode ser útil na garantia de seus direitos. 

História como esta encontram-se a espera de pesquisadores e leitores no Acervo do Museu de Pará de Minas - MUSPAM. 

Veja abaixo o Podcast sobre este processo:

 

 

1 de novembro de 2025

Ensaio geral

Márcio Simeone
Cadeira n.º 8
 
 

 

No meu novembro, é possível adivinhar a fúria do verão, com cheiro de mangas e jabuticabas. Começa com o ritual da memória e do respeito aos que se foram. Este ato não se encerra nas lápides frias, mas também alcança as permanências. Assim começamos, nutridos pelas nossas melhores e mais calorosas lembranças, e sentimos que é a hora de renovarmos os pactos de nossa existência, sempre tão frágil, e de nos abrirmos para o que ainda haverá de vir. É uma espécie de aliança entre passado e futuro, que se molda tanto nas saudades quanto nas esperanças. Portanto, este é o meu mês do devir. Logo virão as festas, o novo ano, a nova estação. Já encontro nele o fluxo mais intenso e as potencialidades do que seremos no ano que se prepara. Só um ensaio. É este o momento que trago à consciência os fins e os fechamentos dos meses sobre si mesmos e as urgências de fazer o que até então foi procrastinado - sempre mais do que gostaria. Na minha infância, a simples expectativa do término das atividades letivas já me enchia de entusiasmo. Novembro foi sempre esse logo-ali, um quase-lá, onde tudo de bom está tão perto, mais fácil de alcançar, o que serve para nos aplacar a nostalgia, curar nossa ansiedade e nos encher de novas promessas. Vamos deixando de ser, para nos prepararmos para ser mais.

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Imagem: gerada por ferramenta de IA