Carmélia Cândida
Cadeira n.º 2
Eu queria muito ser o cachorro da
minha casa. Primeiro, tenho que dizer que sou doida com ele. Todo o mundo, lá
em casa, é. Ele é tão fofinho, tão lindo, carinhoso e alegre. Quando eu não
tenho nada pra fazer, eu costumo ficar imaginando as coisas, é gostoso porque,
no meu pensamento, elas acontecem do jeitinho que eu quero, e eu me sinto muito
bem. Eu fico pensando, nessas horas, que eu poderia ser o Charles (Charles é o
nome do nosso cachorro). Não o tempo todo, mas nos fins de semana, por exemplo,
que é quando minha mãe fica mais em casa.
Eu iria divertir toda a família,
fazer gracinhas, e “eu”, meu irmão, meu padrasto e minha mãe brincariam comigo.
Fico vendo o carinho que minha mãe tem com Charles. Quando o assunto é ele, ela
nem parece minha mãe. Tem a maior paciência. Ela até xinga ele se ele faz
alguma coisa errada, como entrar com as patas sujas dentro de casa e sujar tudo,
mas não é como xinga a mim e a meu irmão, é com jeito. Com a gente, ela grita
tanto que dá até tristeza. Se a gente pisa na sala enquanto ela está limpando,
Deus me livre, ela expulsa a gente, aos gritos.
Quando eu digo que queria ser o
Charles, eu não estou brincando, falo muito sério. Para vocês terem uma ideia,
minha mãe chama o Charles de “bebê da mamãe”, e ele nem é mais um bebê (e ela é
lá mãe de cachorro?). Ela diz para ele coisas do tipo “você é lindo demais, a
mamãe ama muito você”. Imaginem! Ela, que nunca diz coisas desse tipo para mim
ou meu irmão, que somos seus filhos. Se eu preciso de ajuda para fazer os deveres
da escola e estou com dificuldade, ela fica dizendo “A Alice (eu) é burra
demais, ô menina burra, ela não entende as coisas”, e fica nervosa. Mas a pior
coisa que ela diz para o Charles, na minha opinião, é “você é o amor da minha
vida”. Repararam? “O” amor da vida dela. Como pode isso? Ela tem filhos,
marido, pai, mãe, avós, amigos, e o cachorro é quem é o amor da vida dela. Não
entendo.
A mim, minha mãe raramente faz um
elogio. Um carinho ou um mimo? Não é bem o estilo dela. Antes, quando ela
chegava do trabalho, a gente corria para ela, queria abraçar, ficar perto,
sentar no colo. Mas ela nos afastava, irritada, dizendo “Ah, não! Eu estou
morrendo de cansaço, pelo amor de Deus!”. Agora a gente nem faz muito isso, só
quando a saudade dela aperta demais. Mas, quando ela vê o Charles, é diferente,
se derrete toda, ri para ele, pega ele no colo, aconchega-o nela e por aí vai.
Eu entendo que minha mãe trabalha
muito para dar o melhor para a gente, como ela diz. Ela reclama que está sempre
ocupada e nunca tem tempo para nada. Mas, nos finais de semana, passa um tempo
enorme cuidando do Charles, dá banho demorado, enxuga-o, seca seus pelos no
secador, penteia-o e depois ainda fica com ele no colo um tempão, como se fosse
um nenê mesmo. É até bonito vê-la quando ela está fazendo isso, pois ela parece
tão leve e feliz, e parece gostar mesmo desses momentos com o Charles. Não
achem que é puro ciúmes da minha parte, eu só queria ser um pouco tratada como
ela trata o cachorro... e sonho com um dia em que ela possa brincar comigo,
como a mãe da Cecília, minha amiga, brinca com ela. Nesse dia, eu vou lhe dar
um beijo e lhe dizer, sorrindo (e sem medo de irritá-la): “você é a melhor mãe
do mundo, eu te amo”!
Eu amo muito a minha mãe e vou
amar ela para sempre. E gosto muito do Charles também. Fico feliz que ele
esteja conosco e que ela seja carinhosa com ele. Ainda bem que ela gostou dele
desde o início e o aceitou. Mas, por mais que eu goste do Charles, para mim,
ele é um cachorro e não gente. Merece carinho, cuidados, atenção, mas cachorro
deve ser tratado como cachorro, e gente deve ser tratada como gente.
Talvez eu esteja sendo injusta
com minha mãe. Talvez eu esteja querendo mais do que ela pode dar. Talvez eu
seja mesmo chata e cansativa. Mas pode ser também que eu seja só uma criança que
não tem culpa de nada. Ou pode não ser nada disso. Pode ser apenas que o desejo
da minha mãe era ter cachorro e não filhos. Será por isso que ela é assim?