domingo, 30 de dezembro de 2012

Semelhanças de fatos




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Li um texto de Rachel de Queiroz com o título “Ah, a vaidade literária!” e nele ela divaga, vai ao passado, lembrando fatos relacionados com o tema que ela escrevia. Outras vezes começava a desviar do assunto, narrando um fato de que havia se lembrado. Pouco depois voltava ao tema dizendo: “Mas estávamos falando em escrever..” e com a maestria tão própria dela tudo caminha de uma maneira agradável, que prende o leitor o tempo todo. É como se ela estivesse a nossa frente conversando e muitas vezes parece até que fazemos parte da conversa, pois ela usa a primeira pessoa do plural, como no último trecho citado.

 Nesta prosa boa, senti-me numa das noites de inverno lá da fazenda, reunida com todas as pessoas da casa na beirada do fogareiro, que era um recipiente de metal com formato arredondado e se sustentava em três pés. Nele se colocavam brasas para aquecer as pessoas. Ali a conversa era anacrônica, ia ao passado e voltava ao presente com a maior agilidade. Nós, crianças, muitas vezes sem conhecer os personagens, nos envolvíamos com as histórias.        

Numa dessas divagações, Rachel se lembra do cargo que existia nos tempos idos e que se chamava “secretário de jornal”. Era, como ela disse, muito mais temível que o próprio dono do jornal.  Todos os textos tinham de passar pela sua correção e, pelo que ela narra, a caneta dele funcionava como uma temível censura. O que ele riscasse não tinha mais salvação. Ninguém poderia questioná-lo. E ela narra: “ Me lembro de certa vez, quando colaborava no findo Correio da Manhã, vi devolvida, riscada a lápis vermelho, uma frase iniciada por pronome oblíquo: Me parece... O papel me voltou rodeado por um círculo vermelho, como um sol de fogo. E quem o traçara fora o próprio secretário, o dr. Costa Rego em pessoa.  Meninas são atrevidas, e eu ousei replicar (em lápis azul) – Mas o Mário de Andrade escreve assim...” “A senhora não se chama Mário de Andrade. Corrija o texto.” “Com a mão de revolta, corrigi o texto para Parece-me. Acho que foi neste dia que se agravou o meu surto comunista.”

            Ao ler isso, lembrei-me de um caso semelhante acontecido comigo. A minha professora corrigiu uma vírgula mal colocada num texto que eu escrevera. Falei com ela que eu achava que nem sempre as vírgulas deveriam seguir as regras. Que a pessoa que  escrevia deveria ter a liberdade de colocar a pausa onde bem entendesse, e completei: “A Clarisse Lispector determinava o lugar que ela queria e não admitia que o editor de seus livros mudasse ou suprimisse uma vírgula. Dizia que somente ela sabia onde era necessário dar uma pausa”. Ela olhou-me, deu uma risadinha e falou: “Você não é a Clarice Lispector!” Respondi: “ Mas seria muito bom se eu pudesse ter pelo menos um pouco da liberdade que ela tinha.”

            Admito ter dúvidas até hoje do correto emprego de vírgulas. O professor Pedro Moreira é incansável na luta de me mostrar as razões que justificam a sua posição. Quando levo textos para ele corrigir, sempre me dá pacientes explicações. Às vezes coloco o raminho no lugar onde não é necessário e, em outras, eu não o coloco onde é indispensável. O termo raminho é correto. Foi ele quem me disse que vírgula, em latim, tem esse significado. Não acho que seja tão grave um raminho a mais ou a menos ou fora do lugar. Creio que seria pior se o erro fosse na colocação das aspas, pois de acordo com ele, aspas, em suas origens, significam chifres. Imagine que grave seria colocar chifres em lugares errados. Aliás os chifres hoje não são admitidos nem onde eles são originários. Os fazendeiros mocham o gado e fogem das moscas-de-chifre.

Mas a verdade é que preciso aprender, sim, pois necessito das vírgulas o tempo todo e, como não sou a Clarice Lispector, tenho que me submeter às imposições da gramática.

Déa Miranda
Cadeira nº11
Patrono: José Gastão Machado
               

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Uma nova sede para a Biblioteca Pública de Pará de Minas



Eu tenho uma dívida impagável com a Biblioteca Pública Professor Melo Cançado, de Pará de Minas. Devo a ela o leitor que sou hoje e todo o prazer que isso me proporciona – que é imenso, intenso e maravilhoso.

Tudo começou em 1985. No início minha mãe me levava, mas logo passei a ir sozinho, quando voltava da escola, cheio de expectativa e curiosidade. A Biblioteca ficava no prédio da antiga rodoviária, um local pequeno e pouco convidativo, inadequado para abrigar todo aquele universo de sonhos e aventuras que, adormecidos, aguardavam a chegada dos leitores. Mas eu nem ligava para o lugar; o que me interessava eram os livros, os escritores e suas histórias, que eu devorava com enorme prazer.

Entre 1985 e 1990 eu li uma infinidade de livros tirados daquelas estantes, a maioria de Marcos Rey, Stella Carr, Lúcia Machado de Almeida, Marion Zimmer Bradley, Julio Verne e Agatha Christie. De Agatha Christie eu li a obra completa (uns 70 livros ou mais) em dois anos, a maioria emprestada da Melo Cançado. Ali também descobri o escritor mineiro Rubem Fonseca, que eu leria com uma avidez desesperadora entre 90 e 92, degustando cada frase, cada cena, cada personagem (o seu romance “Bufo & Spallanzani” me marcou tanto que eu o li três vezes).  

De lá para cá nunca deixei de frequentar aquele recanto paradisíaco, no prédio da antiga rodoviária e, depois, em sua atual sede, na Casa da Cultura. E tenho muito orgulho em dizer que a minha filha de oito anos já tem a sua ficha e é leitora assídua dos livros da seção infanto-juvenil. Pena que o espaço continua inadequado: pequeno, escuro e abafado.

Não só em quantidade, mas também em qualidade, a Melo Cançado surpreende. De clássicos a best-sellers – contos, romances e poesias –, tem de tudo ali, para todos os gostos. Só não dá gosto frequentar o lugar. O paraíso está nos livros, não no local que os abriga: não tem mesas e cadeiras, os corredores são sombrios e apertados, e a seção infanto-juvenil chega a dar medo nas crianças – embora continue ali, em suas estantes, grande parte dos livros que me encantaram nos anos 80 (de vez em quando eu os folheio, relembrando o passado, cheio de saudade...).

Sei que existe um excelente projeto para construir uma nova sede para a Biblioteca Professor Melo Cançado. Infelizmente ele não foi executado – não por incompetência da Secretária de Cultura, Maísa Lage (que realizou, juntamente com o Diretor de Cultura, José Roberto Pereira, e sua equipe, um trabalho memorável na área cultural em Pará de Minas), mas porque outras ações foram vistas como prioridades e, por isso, não houve tempo. Infelizmente.

Peço então ao novo Secretário de Cultura, Luciano Pereira, que dê uma atenção especial à nossa Biblioteca. Ela precisa sair da Casa da Cultura. Aquele espaço não é adequado.  Há ali todo um universo de sonhos e magia que merece um local digno da sua importância, da sua história em Pará de Minas e do que ele representa para as vidas de inúmeros leitores.

Sem querer me gabar, naquelas estantes há vários livros doados por mim, a maioria coisa boa, literatura de qualidade, em ótimo estado de conservação. Continuarei doando até morrer. Onde quer que esteja a Melo Cançado, seja qual for o prefeito ou o Secretário de Cultura, ela me terá como fiel doador. Assim vou pagando minha dívida impagável...  Só não quero morrer sem ver a nova sede. Se isso acontecer, voltarei para puxar o pé das autoridades responsáveis. Ah se voltarei...

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Papai Noel para poucos



Querido Papai Noel,

Neste ano eu me comportei direitinho. Obedeci à mamãe e ao papai, não briguei com a minha irmã e usei o dinheiro da minha mesada com muita responsabilidade. O papai me dá setecentos reais todos os meses para eu gastar com o que eu quiser, mas eu economizo duzentos reais por mês. (É que eu quero juntar três mil reais para levar para a Disney no ano que vem e comprar um monte de coisas legais para mim).

Na escola eu também fiz tudo direitinho. Meus colegas fizeram muitas coisas erradas, mas eu não. Todos os dias eles insultavam um outro menino, que veio estudar na nossa sala com uma bolsa de estudos, porque ele é pobre e negro, coitado. Eles batiam nele e o chamavam de um monte de coisas feias, como urubu, filhote de cruz credo e favelado; e ainda chamavam a mãe dele de prostituta e o pai de drogado e traficante. Só que eu não. Eu ficava caladinho. Eu não conversava com o menino porque não pegava bem (a galera ia ficar me zoando e ia acabar me isolando do grupo); só a professora e a diretora falavam com ele. Mas eu nunca bati nele, nem o chamei de nomes feios.

De vez em quando umas pessoas muito pobres tocam o interfone daqui de casa pedindo um prato de comida ou um pedaço de pão. Quando sobram restos de comida nos pratos, eu junto tudo, embrulho num jornal e levo para eles. Quando não sobra nada, eu pego uns dois ou três pães (que ficam guardados no armário a semana inteira para endurecer e a empregada poder ralar para fazer farinha de pão) e jogo para eles por cima da grade. Um dia um menino que estava com eles me pediu água. Mesmo correndo o risco de sujar o piso de granito da mamãe, eu abri o portão e deixei o coitado usar a torneira do jardim. O meu pai até chegou na hora e empurrou o menino para fora, chamando-o de pivete imundo. Eu fiquei muito triste com o papai.

Ontem esteve aqui em casa a minha tia Jaciara. Ela me contou que só existe um Papai Noel de verdade: o senhor. Ela disse que aquele Papai Noel que fica na casinha da Ascipam é de mentira; que o Papai Noel de verdade é um espírito superior, que só visita as residências de pessoas superiores, como nós, que merecem ser presenteadas. Foi aí que eu entendi por que os alunos bolsistas lá da escola, que são inferiores, só ganham de Natal brinquedos ruins, enquanto nós, superiores, ganhamos brinquedos bons e caros. É que quem dá os presentes para as crianças pobres são os próprios pais delas (ou alguma instituição de caridade ou empresa), que não têm muito dinheiro, enquanto, no nosso caso, é o senhor mesmo, que vem com as suas renas mágicas visitar as nossas casas.

Aproveito esta carta também para agradecer o helicóptero de controle remoto, o computador, o tênis Puma e o celular que o senhor me deu no ano passado. Muito obrigado, Papai Noel. Gostei demais! O helicóptero ainda está funcionando, mas eu não brinco mais com ele porque fiquei enjoado, então eu o empresto ao filho da empregada todo sábado de manhã. O senhor precisa ver a alegria do menino! O computador já não me serve mais, porque de uma hora para outra ele ficou muito devagar e o papai teve que comprar outro. O tênis eu tive que parar de usar porque o Eloi, meu colega, chegou com um muito mais caro do que o meu, então eu tive que pedir ao papai para comprar um de uma marca ainda mais cara, para eu não ficar para trás. E o celular, o senhor sabe, não dá para ficar com o mesmo por muito tempo, no máximo dois ou três meses, porque sempre aparece um mais avançado, com design mais moderno e mais caro lá na escola, e a gente tem que trocar o nosso, para ninguém ficar zoando a gente.

Neste Natal, eu peço ao senhor um laptop (o melhor que tiver no mundo), porque quinze colegas meus já têm os seus e eu preciso ter o meu também; uma viagem ao Japão, porque até hoje ninguém na minha sala foi ao Japão; e um celular novo (também o melhor do mundo), porque eu não posso ficar para trás.  

Ah! Já ia me esquecendo! Se for possível, eu queria confirmar uma coisa com o senhor. É que ontem, junto com a tia Jaciara, veio nos visitar o tio Tomás, que é deputado lá no Congresso. Ele ficou o tempo todo rindo (com a mão naquela pança enorme que ele tem), bebendo um vinho importado da mamãe (reservado para ocasiões especiais), e disse que este ano o Papai Noel DELE vai chegar bem mais gordo (e de jatinho), por causa de um aumento de mais de 60% no salário que eles mesmos se deram lá no Congresso. A tia Jaciara tinha acabado de me contar a verdadeira história do Papai Noel (ou seja, do senhor), e na hora só pude crer que o tio Tomás tinha se equivocado. Como é possível que ele possa ter um Papai Noel só dele (mais gordo do que o dos outros e que chega de jatinho e não de renas mágicas) se só existe um Papai Noel: o senhor?

Um forte abraço, blá blá blá...

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

terça-feira, 18 de dezembro de 2012


                                                       ENTÃO É NATAL!

  

Então é NATAL! Natal de otimismo, e não de consumismo;

Então é NATAL! Natal de emoção, e não de corrupção;

Então é NATAL! Natal de um mito, e não de um conflito;

Então é NATAL! Natal da vitória, e não da discórdia;

Então é NATAL! Natal da felicidade, e não da contrariedade;

Então é NATAL! Natal de um tempo, e não de um tormento;

Então é NATAL! Natal de valorização, e não de persuasão;

Então é NATAL! Natal de glórias, e não de falsas memórias;

Então é NATAL! Natal da criação, e não da perdição;

Então é NATAL! Natal da paixão, e não da destruição;

Então é NATAL! Natal da solidariedade, e não da vaidade;

Então é NATAL! Natal de afinidades, e não de contrariedades;

Então é NATAL! Natal de alegrias, e não de folias vazias;

Então é NATAL! Natal de bondades, e não de perversidades;

Então é NATAL! Natal de paz, e não de desilusão daquilo que se faz;

Então é NATAL! Natal do nascimento, e não do esquecimento;

Então é NATAL! Natal de merecer, e não de se engrandecer;

Então é NATAL! Natal do milagre, e não do massacre;

Então é NATAL! Natal da coragem, e não da miragem;

Então é NATAL! Natal do conserto, e não do tropeço;

Então é NATAL! Natal do amor, e não do rancor;

Então é NATAL! Natal de um menino ser, e não do poder;

Então é NATAL! Natal da justiça, e não da preguiça;

Então é NATAL! Natal de fantasias, e não de nostalgias;

Então é NATAL! Natal de uma flor, e não de uma dor;

Então é NATAL! Natal de uma nova esperança, e não de uma falsa festança;

Então é NATAL! Natal de harmonia, e não de agonia;

Então é NATAL! Natal da doação, e não da escravidão;

Então é NATAL! Natal da sobriedade, e não da inverdade;

Então é NATAL! E que esses nossos sonhos sempre vivos, são a esperança para um amanhã de justiça e paz cada vez mais próximos.

 
UM FELIZ E SANTO NATAL!
 

QUE DEUS ABENÇOE A TODOS! 

 

Ailton José Ferreira

Membro da Academia de Letras de Pará de Minas. Cadeira nº 07

Policial civil aposentado, Bel. Direito, Pedagogo, Escritor e Educador.

domingo, 9 de dezembro de 2012

O CÉU ESTÁ NO CAMINHO


Márcio Simeone
Cadeira n.º 8

Em lugar improvável e em hora imprevista veio o Salvador. Em meio de caminho a lugar qualquer, em lugar nenhum. Fora do mapa nasceu um Menino-Deus sem chão, sem parte, sem nada de seu senão sua vida errante. Prenúncio de futuro, eterno migrante rumo a seu destino. Logo o Deus-Menino vai aprender a ler o que se inscreve no chão pedregoso e o que desenha o sol nas terras em brasa. Amanhã, desperto pelo sofrimento do mundo, vai sair em viagem, amante da estrada, em incerto destino. Pois assim estava escrito: um Homem-Deus peregrino. Vida em trânsito lembra: tudo passa e tudo está em toda parte.  Andará por terra inóspita. Percorrerá o deserto, atravessará os rios, adentrará as cidades, criando o céu, sonhando com o paraíso.

Tantas famílias sagradas vagam como Ele. Gente andarilha, que tem chão de pisar mais que água de beber. Triste saga de retirantes, vida rude de pequeninos, a quem resta crer e confiar em terra tão prometida, em céu tão distante. Mal nasce aquele menino e já se adivinha o bem-aventurado dia em que vai proclamar na planície e nas montanhas a Boa-Nova a este povo. Mas a palavra ainda demora. Ele ainda dorme em paz seu sono sagrado de criança. Porém, uma estrela fulgurante, vinda do nada, aponta uma direção, aqui, agora. Já se inicia a marcha: somos todos peregrinos, porque o céu está no caminho...

quinta-feira, 29 de novembro de 2012




Academia de Letras de Pará de Minas
Rua Itaquera, 268 - Providência
35661-141 – Pará de Minas/MG

 











Informativo da Academia de Letras de Pará de Minas
Novembro de 2012



Pará de Minas e Minas Gerais ganham obra de pesquisa literária



Em comemoração aos seus 15 anos de fundação, a Academia de Letras de Pará de Minas (ALPM) realiza, sábado, 1º de dezembro de 2012, às 19h, na Faculdade de Pará de Minas-FAPAM, na Rua Ricardo Marinho, 110, bairro S. Geraldo, Pará de Minas, o lançamento do livro “Pará de Minas em tempo de Literatura. Ensaios: escritos e escritores”. A obra, organizada pelos acadêmicos Terezinha Pereira, Lígia Muniz e Márcio Simeone, apresenta o resultado de uma extensa e importante pesquisa, iniciada em 2005, na área da literatura pará-minense de modo especial e da região.

O trabalho de pesquisa, coordenado por Terezinha Pereira, foi realizado por Ana Cláudia Saldanha, Eleusa Maria Rodrigues Pereira (bibliotecária da Biblioteca Pública de Pará de Minas), José Roberto Pereira, Júlio Saldanha e  Terezinha Pereira. Ao longo do caminho outros se juntaram ao grupo citado: os membros da Academia de Letras de Pará de Minas, alunos e professores do Curso de Letras da Faculdade de Pará de Minas – FAPAM e alguns colaboradores de importantes setores da cidade e região.

“Pará de Minas em tempo de Literatura. Ensaios: escritos e escritores” foi editado pela editora “O Lutador” com recursos do Governo do Estado de Minas Gerais, através da Secretaria de Estado de Cultura. Segundo a escritora Terezinha Pereira, membro da Academia de Letras de Pará de Minas “o livro ora apresentado vem registrar e celebrar a literatura de Pará de Minas no ano de aniversário de 15 anos da Academia. É uma tentativa que, espero, seja acolhida com graça e louvor. É a primeira que expõe obras de dezenas de autores da terra”.

Espera-se que este livro sirva de objeto de estudo para pesquisadores e estudiosos brasileiros e que abra as comportas para que surjam outras obras de estudos literários a partir dos municípios de Minas Gerais.


Contato e mais informações com a acadêmica Terezinha Pereira pelo e-mail pmat.48@gmail.com


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Eternizando momentos


Estava olhando umas fotos antigas e observando a maneira solene com que as pessoas eram fotografadas, assumiam uma postura elegante, um ar de gravidade. As mulheres, extremamente femininas, costumavam colocar a mão sob o queixo. Ficavam quase sempre de pé, enquanto os homens permaneciam assentados com ar altivo. Dava-se para perceber claramente a posição de superioridade que gozavam naquela época. Suas esposas com modo servil, ao mesmo tempo filial, descansavam o braço em seus ombros. Eles, elegantes, quase sempre de bigodes, barbas, vestidos de fraques, tendo bengalas, chapéus, charutos como acessórios. Elas com os cabelos presos, bem penteados, vestidos trabalhados em rendas e babados.

Tirar foto naquela época era um momento realmente solene e, por isso, todos os rostos adquiriam um ar compenetrado, não vemos neles nem sequer um leve sorriso. Fiquei repassando todas as fotos e não vi nem mesmo o misterioso sorriso de Monalisa. Mas, por outro lado, dava-se a impressão de serem pessoas tranquilas, serenas... Não havia nenhum sinal de agitação naqueles olhos, naqueles rostos. Seriam felizes aquelas pessoas? Talvez fossem. Afinal felicidade é um estado de espírito que independe de vários fatores. Hoje vemos pessoas totalmente liberais, sorrindo, sendo tudo que desejam ser, mas percebemos que há um vazio que nada é capaz de preencher. Vivem numa busca desesperada por prazer, mas não são felizes e aumentam cada vez mais a estatística que comprova que estamos vivendo o “século da depressão”.

Na verdade uma foto revela uma dimensão bem maior muito além do físico. O escritor memorialista Pedro Nava com toda a sua perspicácia, memória prodigiosa, descreve uma fotografia com riqueza de detalhes e, depois, comenta o que se vê além da parte física: “...E mais, o ar a um tempo enérgico, levemente irônico, autoritário e cheio da tranquila segurança da senhora dona bem instalada nas suas sedas, nas suas alfaias, no conforto do seu sobrado ...”.

Três dessas fotos que eu olhava, eram daguerreótipos do ano de 1855. Haviam sido tirados no Rio de Janeiro, na Rua do Ouvidor. Um deles era da minha tataravó, o outro, minha bisavó e, o terceiro, retratava o meu bisavô.

O daguerreótipo (imagens obtidas com um aparelho capaz de as fixar em placas de cobre cobertas com sais de prata),  foi o primeiro aparelho a fixar a imagem fotográfica, também o primeiro processo fotográfico reconhecido mundialmente, criado pelo francês Louis- Jacques Mandé Daguerre (1787-1851).

A fotografia chegou ao Brasil no dia 16/01/1840, pelas mãos do abade Louis Compte, capelão de um navio-escola francês (corveta franco-belga L’Orientale) que aportou de passagem pelo Rio de Janeiro. Ele trouxe a novidade de Paris para a cidade, introduzindo a Daguerreotipia no país.

Em 21/01/1840, D. Pedro II (aos 14 anos de idade), entusiasmado com a nova invenção apresentada por Compte, encomenda um equipamento de Daguerreotipia em Paris. Em março de 1840, adquiriu um aparelho, comprando-o diretamente de Felicio Luzaghy, por 250 mil réis, possivelmente a primeira máquina desta arte em mãos brasileiras. Tornou-se assim, o primeiro fotógrafo brasileiro com menos de 15 anos de idade! Oficialmente, ele é considerado o primeiro deguerreotipista brasileiro.

Passar algum tempo observando fotografias antigas faz com que entremos, aos poucos, na vida dessas pessoas. Quando são nossos antepassados e, principalmente, se sabemos alguma coisa sobre eles, essa sensação se torna mais forte ainda. Seguramente os laços de sangue se tornem mais evidentes ao repararmos algum traço familiar nesses rostos.

Tirar foto é eternizar um momento, uma pessoa e, por que não dizer um sentimento? Quando olho as minhas fotos sou capaz de perceber com precisão o que eu sentia naquele exato momento. Talvez até nem tivesse consciência do que se passava no meu interior no instante do flash, mas agora vejo que está congelado no tempo...

Déa Miranda
Cadeira nº11
Patrono: José Gastão Machado

sábado, 10 de novembro de 2012

Felizes acima do peso



Na festinha de aniversário da filha de um conhecido advogado na cidade, o jovem professor e sua esposa dividem a mesa com um casal de amigos. Eles não têm filhos, mas vieram assim mesmo, por vir. Para cumprir o social.

O prato com coxinhas, empadas e canapés acaba de chegar.

As crianças brincam no parquinho longe dos pais, que nas dezenas de mesas espalhadas pelo enorme salão colorido conversam ao som de Xuxa e Balão Mágico.

O professor olha para a sua linda e jovem esposa, os cabelos negros, lisos e brilhantes, a pele clara, de uma palidez de conto de fadas, e sente no peito uma dor difícil de explicar, porque não dói: algo como uma nuvem densa e fria, quase gelada, preenchendo os espaços entre o coração e os pulmões, indo até a garganta e voltando, indo e voltando, lentamente.

É a angústia.

A esposa não conversa. Observa os amigos do marido com desprezo. Não sabe o que está fazendo ali, nem por que está casada com um professor pobre e acima do peso. Justo ela, que é tão magra, linda e saudável, e ainda por cima de estirpe nobre, pois seu pai, embora falido, é tataraneto do Marquês de Itamaracá.

Na opinião de algumas colegas de trabalho do jovem professor (professoras como ele no Colégio São Francisco), aquela barriga levemente inflada esticando a camisa de algodão tamanho M, que a esposa insiste em fazê-lo vestir (quando está claro para todos que a G é a única possibilidade), é um charme a mais, tornando-o até mais bonito e sexy. Mas sua mulher não concorda com isso de jeito nenhum. Quer vê-lo magro, sem barriga, sem bunda, sem coxa, sem aquele harmonioso preenchimento de gordura que disfarça os ossos salientes do rosto, tornando sua face mais redonda (e mais atraente, na opinião das colegas). Quer vê-lo na balança digital do quarto todos os dias, anotando o peso, calculando o índice de massa corporal e as calorias ingeridas.

A caminhada é um ritual diário sagrado na vida do casal. Pelo menos para a mulher. Porque para ele é uma tortura das mais difíceis de suportar. Ele simplesmente odeia cada segundo passado na avenida, onde caminham todos os dias, faça chuva, sol ou tempestade. Às sete da manhã eles já estão lá, no mesmo ritmo, em silêncio: um silêncio triste, que ele preenche conversando baixinho consigo mesmo, preparando aulas, imaginando-se longe dali, em qualquer outro lugar, comendo um pastel, um crepe ou uma torta de limão.

Mas, como eu disse, o pratinho com coxinhas, empadas e canapés acaba de chegar.

Com um olhar fulminante, a esposa faz o marido se lembrar do pacto selado entre eles há duas semanas: nada de gordura, nada de fritura e nada de açúcar. Discretamente ela lhe faz um sinal com a mão, mostrando-lhe a bolsa de couro que ela traz no colo, onde duas barras de cereal se encontram sequinhas, durinhas, com seu gostinho inconfundível de capim seco. Como é sábado, os nomes dos sabores podem variar: trufa e torta de morango (mas ele sabe que no fundo é tudo a mesma coisa).

O combinado era que, quando a fome apertasse, ele pegaria discretamente uma das barras e se dirigiria ao banheiro para comê-la. Simples e prático.

No entanto, assim que ele percebe o sinal da mulher, a nuvem densa e fria da angústia que lhe aperta o peito fica mais pesada e escura (de um cinza quase preto), cheia de ódio e desilusão.

E ele toma uma decisão.

Olha desafiador para a esposa (que o encara com determinação e frieza) e lentamente pega uma coxinha. Não é daquelas coxinhas vagabundas, frias e emborrachadas, que viram uma pasta sem gosto na boca antes mesmo de se misturarem à saliva. Não. É coxinha frita na hora, firme, crocante, com recheio abundante de frango e catupiry.

Ele dá a primeira mordida. Sente seus dentes quebrarem a fina capa crocante e penetrarem lentamente a maciez tenra da deliciosa massa recheada. E nesse momento de sublime deleite, um pouco de catupiry escorre pelo seu queixo. Ele sorri e passa o dedo no creme, que leva à boca com sofreguidão, sorvendo tudo com um estalar de língua molhada que faz a esposa tremer de indignação e ódio no mais íntimo do seu ser.

Os olhos da mulher estão em chamas.

Mas ele continua.

Um canapé inteiro desaparece na sua boca de uma só vez. E outro. E mais outro. Mais uma coxinha. Uma empada. Um copo de coca-cola bem gelada (da legítima, com açúcar). E outro. E mais outro. E mais uma coxinha. E depois dos parabéns, uma mão cheia de doces, sob o olhar atônito da esposa (que não acredita no que vê). Do bolo ele come dois pedaços, saboreando-os com uma alegria de dar gosto.

O olhar resoluto e frio da esposa diz tudo. Ela se levanta e, sem se despedir de ninguém, desaparece da festa.

Ao chegar em casa, o professor descobre que a mulher foi embora levando todas as suas roupas e objetos pessoais. Dois dias depois ele recebe a visita de um advogado, que lhe explica todos os detalhes do divórcio. Ele aceita tudo sem reclamar.

Finalmente está livre.

O divórcio deixa-o mais pobre e um pouco mais gordo, mas muito mais feliz.

Três semanas depois ele começa a namorar a nova professora de História do Colégio São Francisco, uma mulata linda de morrer, cheia de carne para pegar e de amor para dar. Comem de tudo, reservando as guloseimas mais calóricas para os finais de semana, e exercitam-se na cama quase todas as noites, o que ajuda a manter o excesso de peso num nível aceitável.

Ele adora suas ancas largas, sua bunda redonda e volumosa, e até suas celulites.

Formam um casal perfeito...

Acima do peso...

Mas felizes...

Muito felizes.

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

Imagem: quadro de Fernando Botero

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Descendo do salto


A bela professora universitária entrou na sala de aula como se estivesse na passarela de um desfile de modas em Paris ou Milão. Embora já estivesse com o atestado médico em mãos, assinado por uma prima ginecologista, ela resolvera, de última hora, abandonar o marido e os amigos no refinado restaurante francês Le Bistrot e ir direto para a universidade. Fez isso pelos alunos, que queriam muito a sua presença durante a realização da atividade que ela havia preparado para aquela noite, e que seria aplicada por uma estagiária.

Quando ela entrou na sala, irradiando beleza e simpatia, havia em seus intestinos meia garrafa de um vinho francês da Borgonha e uma porção bem fornida de um maravilhoso Cassoulet, feito especialmente para o grupo com gansos importados da França: um verdadeiro banquete para as bactérias que viviam ali. Elas se fartaram da mistura, liberando, no processo, gases como o metano, o sulfeto de hidrogênio e o dióxido de carbono. Se os ingredientes vinham da França, da Alemanha ou do quintal de um pequeno roceiro do interior de Minas Gerais não interessava à fauna voraz que produzia tais gases. Assim que fossem expelidos, federiam, e quanto mais enxofre houvesse na mistura, mais fedidos seriam.

Enquanto a professora dizia algumas frases decoradas em francês para impressionar os alunos, tentando imitar os sons ouvidos no filme Piaf ou em Coco avant Chanel, uma pequena bolha de gás, contendo uma quantidade considerável de sulfeto de hidrogênio (rico em enxofre), aumentava de tamanho entre as paredes do seu intestino grosso. Ela circulava em torno de um bolo fecal de aspecto uniforme e cor marrom parda, que se movimentava lentamente em direção ao ânus da mulher.

A bolha aumentava de tamanho a cada segundo. Às vezes a professora até sentia o seu movimento, que se não fosse o constante toc toc de seus saltos sobre o piso da sala, poderia ser ouvido até pelo aluno que estivesse mais próximo. E aos poucos outras bolhas foram se juntando à bolha maior, pois no restaurante a professora conversou muito (a maior parte do tempo criticando colegas de trabalho que ela considerava inferiores), e enquanto ria e falava, uma enorme quantidade de ar entrava pela sua boca. O ar não absorvido pelo organismo ou eliminado pelos arrotos discretíssimos que ela soltava foi então acompanhando a refeição intestino adentro.

Enquanto isso, alguns ácaros iniciavam uma pequena reação alérgica nas mucosas nasais da mulher. Um leve corrimento teve início, o que fez com que ela tirasse do bolso um lenço bordado a mão por artesãos indianos, comprado na última viagem que ela havia feito com o marido à Ásia. Levou o lenço ao nariz e, discretamente, limpou um excesso de mucosidade nasal que se acumulava na narina esquerda e que estava prestes a pingar. Uma leve irritação nos olhos e uma coceira em ambas as narinas começavam a incomodá-la.

De repente, uma bolha de ar que se movimentava na parte média do intestino grosso se juntou a uma pequena bolha de dióxido de carbono e sulfeto de hidrogênio (que acompanhava um bolo fecal atrasado), fazendo surgir uma bolha muito maior. Essa bolha forçou a parede do intestino, que pressionava de um lado, enquanto o bolo fecal pressionava do outro, o que fez com que ela se deslocasse rapidamente em direção à outra bolha, a maior e mais fedida de todas, que já se aproximava do ânus da professora. Ao se encontrarem, as duas bolhas formaram uma bolha só, de proporções devastadoras.

Um espirro.

Em pânico, a professora respirou fundo o ar ao seu redor, com medo de que alguma coisa tivesse escapado. Nada. Nenhum cheiro desagradável. Ela tinha que sair dali o mais rápido possível.

Outro espirro, e mais um, e mais outro. A bolha estava quase lá, a mulher podia sentir, e enquanto caminhava lentamente em direção à porta, percebeu uma pressão nas paredes do seu ânus – como um inchaço interno –, que só podia significar uma coisa: uma enorme quantidade de gases já tinha chegado ali e estava pronta para explodir.

Imediatamente a mulher parou. Qualquer movimento podia ser fatal. Um novo espirro seria a tragédia completa. E ali ela ficou, entre duas fileiras de alunos, quase no meio da sala, à espera de um milagre, de uma intervenção divina que fizesse desaparecer todo aquele gás acumulado bem na saída, que ela trancava com todas as forças que sua bem trabalhada musculatura glútea e anal permitia.

Enquanto isso, os ácaros não davam trégua e provocavam mais coceira no nariz da desesperada professora, que já não falava mais, apenas aguardava, em pânico, o que o destino lhe reservava. 

Foi quando veio o espirro, o mais forte de todos, que vibrou a abertura anal com a rapidez de um raio: um único segundo, o tempo de uma pequena piscadela do esfíncter, mas que foi suficiente para que uma parte dos gases acumulados sob pressão escapasse com um enorme estrondo, tão alto, que a tentativa da professora de abafá-lo com o som do espirro foi em vão.

Tragédia.

Todos os alunos escutaram o som e perceberam de imediato de onde ele tinha vindo e do que se tratava. E os que estavam mais próximos da professora sentiram um cheiro tão fedido, que alguns fizeram vômito, e outros chegaram a vomitar no chão, próximo aos pés da desesperada mulher, que não sabia onde enfiar a cara. E antes que ela raciocinasse sobre o que fazer naquela situação, um novo espirro, e um novo estrondo, ainda mais alto e fedido que o primeiro.

O cheiro estava por toda a sala. Alguns alunos pediram licença e se retiraram. Outros foram para a janela. E a professora ficou lá, parada que nem uma estátua, com o pensamento em branco, sentindo o cheiro dos gases produzidos pelas bactérias dos seus intestinos: um cheiro de corpo, de carne, de vida e morte: um cheiro de existir, de ser e estar no mundo, vivendo, comendo e morrendo, como eu, como você... Como qualquer um. 


Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Pulga (ou Pulguinha?)

A Pulga (ou Pulguinha?)
Joandre O. Melo
Cadeira nº20

Era uma pulga matreira.
Não tinha eira nem beira
Em pouco tempo formou sua trupe.
Saltava de algibeira em algibeira; este era seu truque.

Hospedava-se em qualquer pulguedo.
Se não encontrava nenhum, fazia o seu próprio. Pouco tempo ficava; depois, partia.
Vinha com o Paulista, o baiano, o carioca ou com o mineiro.
No farnel do tropeiro desavisado que banho só tomava quando podia.

Era uma pulga matreira.
Que saltava de cliente em cliente,
Não tinha eira nem beira,
Mas, da sua trupe, era pulga mais experiente.

Quando encontrava um otário,
Era este mesmo que escolhia,
Aplicava-lhe, então, o conto do vigário e,
Dali para frente só o mordia.

Oh, como sofriam! Os tropeiros desavisados.
Aqueles forasteiros e estrangeiros que,
Nas paragens eram-lhe apresentados.

Se soubesse falar, a língua dos homens, diria: -- Bom dia, boa tarde ou boa noite, desculpe, mas posso lhe dar uma mordida?
Mas como não dominava nosso idioma, partia para o estratagema pelo qual era conhecida.

Era uma pulga vivida.
De paragem em paragem, deixava seu legado,
Descia e ficava escondida.
No lençol ou no colchão de palhas,
Que desde que fora costurado, nunca seria lavado.

A pulga frequentava lençóis de algodão alvos como as nuvens,
Terminavam tão pardos como o pó do chão.
Poeira não faltava! E a pulga que nascera alérgica, só reclamava da alergia e de sua solidão.
Lamentava, o seu destino, com outras amigas mais jovens.

Se encontrava um catre já pardo,
não dava outra, com o primeiro que ali dormia ela partia.
Seguia sem pesar e para trás não lançava um olhar; Nada a prendia.
Mesmo um catre a pouco encontrado e, ainda não explorado.

Porém, de tanto viajar, picar, mordiscar e se lambuzar em catres alheios,
Cansou. Um dia, então, quando chegou a um daqueles pulguedos,
Algo inesperado aconteceu...
Lá estava, outro ser como ela. Mas este era diferente.
Vivido e corajoso e também musculoso; era um pulgo.
Estava também cansado de sugar, mordiscar e atormentar os tropeiros.
Vivia num capacho.
Era confortável e grande. E a pulga macho!... Como era belo!
Só tinha um problema: o capacho ficara esquecido em um canto da estalagem; bem escondido, todo empoeirado e zurrado. Nunca fora lavado nem ao menos batido.

Ninguém o procurara desde a última década.
Mas, o que importava? Aquele pulgo lindão lá morava!
Para a nossa pulguinha parecia uma enseada,
Cheia de belezas e ainda inexplorada.

Então a nossa pulguinha que era matreira e sem eira nem beira, suspirou apaixonada.
Deixou para trás o seu passado de aventuras.
E ficou naquela parada.
Naquele capacho abandonado passou sua lua de mel. Fez mil e uma diabruras.

Passados alguns dias, a nossa pulguinha faiscante,
Sentiu uma dor lancinante, como nunca sentira antes.
Então, logo descobriu que outras pulguinhas viriam de dentro do seu ínfimo ventre de pulga.

Preparou-lhes um cantinho com fios de cabelo e fiozinhos de algodão que recolhia aqui e ali.
Nem se preocupou com sua alergia.
Meteu-se dentro daquela confusão e de lá só saiu quando todas as pulguinhas alegres e saltitantes foram correndo para o papai pulgo.