Márcio Simeone
Cadeira n.º 8
Seu anjo da guarda era uma criança. Engana-se quem acha que
um anjinho como esse só protege as crianças. Aquele homem feito, jovem, de boa
alma, só poderia ser guardado por um delicado vigilante, daqueles que, em sua
inocência, não têm medo de conhecer e, por não conter as maldades, o acompanha curioso
e sem precondições pelos caminhos mais tortuosos. Conservam-se assim, o jovem e
seu anjo, num estado de descoberta.
Mas nem tudo corria assim tão bem, como se poderia supor,
sob os beneplácitos d’Aquele que protege os distraídos e os puros de coração.
Aconteceu de o anjo, em suas deambulações celestiais, encontrar certo dia numa
nuvem o coração daquele moço. Estranho. Ficou desnorteado, tomou-o
delicadamente nas mãos e foi imediatamente ter com o jovem. Encontrando-o a
dormir, pois era alta noite, não quis esperar nem um segundo, pois algo lhe
dizia que aquilo era uma grave situação: como se poderia viver assim, apartado
do próprio coração? Mesmo assim, seu protegido dormia um sono tranquilo,
daqueles que só as boas almas merecem.
Num breve momento de hesitação, pensou o anjinho nas razões
porque aquele coração estaria numa nuvem distante. Já sabia que umas pessoas às
vezes tinham a cabeça nas nuvens; colocavam lá no céu seus pensamentos para
deixá-los vagar, livres. Já encontrara muitos pensamentos perdidos, aqui e ali,
que muitas vezes formavam nuvens densas. Mas aqueles cúmulus-nimbus costumavam
chover de volta, irrigando a terra. Tinha já aprendido que não era próprio do
homem viver apenas com seus pensamentos ao rés-do-chão. Gostava de pensar nas
ideias que brotavam da terra, encontrando-se com as que vinham do ar, uma força
de vida.
Aquele moço, porém, não tinha a cabeça, mas o coração nas
nuvens. Sua cabeça estava bem atada ao seu corpo, magro e alto. A tranquilidade
do seu sono, naquele momento, contrastava com a ansiedade dos momentos de
vigília: o andar pouco seguro, as pernas inquietas. Compreendeu então o anjo,
num insight angélico, que não poderia
deixar seu protegido sofrer: não era possível sobreviver assim por muito tempo.
Por medo ele guardara o coração nas nuvens. Pensava que lá estaria mais
protegido. Mas enganava-se. Seu corpo, sem o coração a bater no peito, era como
uma máquina, a processar incessantemente muitos e muitos estímulos, como um
computador. Por meio dele tentava acessar as nuvens. Quando conseguia, achava
lá seu coração; era capaz de reconhecê-lo, como numa reprodução tridimensional,
em tela luminosa. Mas não sentia aquele músculo a bater e irrigar cada célula
do seu corpo, variando em intensidade conforme sua pele percebia os calores, ou
segundo as químicas punham a funcionar todos os órgãos. Cria, tola e
ingenuamente, que tendo seu coração em meio às nuvens, poderia dá-lo a ver a
quem quisesse e se interessasse. Não, isso era um perigo.
Urgia, portanto, devolver aquele órgão vital ao seu lugar.
Invocando todas as energias celestes, fez com que um raio de luz claríssimo descesse
sobre o moço e abrisse seu tórax. Ali depositou, delicadamente, como quem
guarda a mais sagrada relíquia, seu coração pulsante. Fazendo as luzes mudarem
de cor para um vermelho intenso, fechou o peito e soprou carinhosamente sobre
ele. Não deu por terminada a tarefa. Por uns instantes contemplou a fisionomia
do rapaz, que seguia serena, e viu que ainda faltava algo para que a sua
intervenção produzisse efeito. Aproximou-se e deu-lhe um beijo. Assim como um
choque elétrico, o poder do beijo de um anjo-criança fez palpitar o coração
numa perfeita sintonia com os ritmos de todo o corpo.
Ao anjo, só restava vigiar. Sentou-se a um canto do quarto à
espera das primeiras horas da manhã. Mesmo que não pudesse ser visto, queria testemunhar
o despertar alegre de um ser em plenitude. De nada mais precisaria aquele jovem para
ter acesso ao próprio coração. E, apesar de bem guardado, alojado em sua
cavidade mais segura, alguém, mesmo sem enxergá-lo, poderá adivinhar seus
movimentos e sintonizar sua frequência. Quando sentir o coração assim tocado,
aquele moço, com certeza, deixará imediatamente escapar seus pensamentos, que,
libertos, vagarão pelas nuvens.