domingo, 27 de maio de 2012

CORAÇÃO NAS NUVENS




Márcio Simeone
Cadeira n.º 8

Seu anjo da guarda era uma criança. Engana-se quem acha que um anjinho como esse só protege as crianças. Aquele homem feito, jovem, de boa alma, só poderia ser guardado por um delicado vigilante, daqueles que, em sua inocência, não têm medo de conhecer e, por não conter as maldades, o acompanha curioso e sem precondições pelos caminhos mais tortuosos. Conservam-se assim, o jovem e seu anjo, num estado de descoberta.

Mas nem tudo corria assim tão bem, como se poderia supor, sob os beneplácitos d’Aquele que protege os distraídos e os puros de coração. Aconteceu de o anjo, em suas deambulações celestiais, encontrar certo dia numa nuvem o coração daquele moço. Estranho. Ficou desnorteado, tomou-o delicadamente nas mãos e foi imediatamente ter com o jovem. Encontrando-o a dormir, pois era alta noite, não quis esperar nem um segundo, pois algo lhe dizia que aquilo era uma grave situação: como se poderia viver assim, apartado do próprio coração? Mesmo assim, seu protegido dormia um sono tranquilo, daqueles que só as boas almas merecem.

Num breve momento de hesitação, pensou o anjinho nas razões porque aquele coração estaria numa nuvem distante. Já sabia que umas pessoas às vezes tinham a cabeça nas nuvens; colocavam lá no céu seus pensamentos para deixá-los vagar, livres. Já encontrara muitos pensamentos perdidos, aqui e ali, que muitas vezes formavam nuvens densas. Mas aqueles cúmulus-nimbus costumavam chover de volta, irrigando a terra. Tinha já aprendido que não era próprio do homem viver apenas com seus pensamentos ao rés-do-chão. Gostava de pensar nas ideias que brotavam da terra, encontrando-se com as que vinham do ar, uma força de vida.

Aquele moço, porém, não tinha a cabeça, mas o coração nas nuvens. Sua cabeça estava bem atada ao seu corpo, magro e alto. A tranquilidade do seu sono, naquele momento, contrastava com a ansiedade dos momentos de vigília: o andar pouco seguro, as pernas inquietas. Compreendeu então o anjo, num insight angélico, que não poderia deixar seu protegido sofrer: não era possível sobreviver assim por muito tempo. Por medo ele guardara o coração nas nuvens. Pensava que lá estaria mais protegido. Mas enganava-se. Seu corpo, sem o coração a bater no peito, era como uma máquina, a processar incessantemente muitos e muitos estímulos, como um computador. Por meio dele tentava acessar as nuvens. Quando conseguia, achava lá seu coração; era capaz de reconhecê-lo, como numa reprodução tridimensional, em tela luminosa. Mas não sentia aquele músculo a bater e irrigar cada célula do seu corpo, variando em intensidade conforme sua pele percebia os calores, ou segundo as químicas punham a funcionar todos os órgãos. Cria, tola e ingenuamente, que tendo seu coração em meio às nuvens, poderia dá-lo a ver a quem quisesse e se interessasse. Não, isso era um perigo.

Urgia, portanto, devolver aquele órgão vital ao seu lugar. Invocando todas as energias celestes, fez com que um raio de luz claríssimo descesse sobre o moço e abrisse seu tórax. Ali depositou, delicadamente, como quem guarda a mais sagrada relíquia, seu coração pulsante. Fazendo as luzes mudarem de cor para um vermelho intenso, fechou o peito e soprou carinhosamente sobre ele. Não deu por terminada a tarefa. Por uns instantes contemplou a fisionomia do rapaz, que seguia serena, e viu que ainda faltava algo para que a sua intervenção produzisse efeito. Aproximou-se e deu-lhe um beijo. Assim como um choque elétrico, o poder do beijo de um anjo-criança fez palpitar o coração numa perfeita sintonia com os ritmos de todo o corpo.

Ao anjo, só restava vigiar. Sentou-se a um canto do quarto à espera das primeiras horas da manhã. Mesmo que não pudesse ser visto, queria testemunhar o despertar alegre de um ser em plenitude. De nada mais precisaria aquele jovem para ter acesso ao próprio coração. E, apesar de bem guardado, alojado em sua cavidade mais segura, alguém, mesmo sem enxergá-lo, poderá adivinhar seus movimentos e sintonizar sua frequência. Quando sentir o coração assim tocado, aquele moço, com certeza, deixará imediatamente escapar seus pensamentos, que, libertos, vagarão pelas nuvens.


         ETERNIDADE

Hoje percebo que meu pai
é eterno.
Depois que se tornou eterno, morreu.
Eternizou pelo exemplo.
E por isso está vivo entre nós, seus filhos.
 

Agora é minha mãe que está se eternizando...
quanto tempo isso irá durar?
Não sei.

Cada um tem seu tempo.
 

Quanto a mim...
busco a eternidade.

FonteBoa
 

segunda-feira, 21 de maio de 2012



À Sombra do Luar



Não quero ficar à sombra

quero a luz da lua,

afinal são os raios do sol

que brilham à noite

Não tenho sonhos de grandeza

quero apenas ser espelho

através do qual. os outros possam brilhar.



Nasci para ser coadjuvante

enquanto todos querem ser ator principal

aceito o papel secundário

a partir dele assisto o espetáculo

da vida.

Aprecio cada momento deste espetáculo

e interpreto-o, faço minha leitura de mundo,

sempre à Luz da Lua.



Geraldo Fonte Boa

sábado, 19 de maio de 2012

Eu não quero ser nada


 

 Eu não quero ser nada!
O meu tempo de ser alguma coisa já passou.
Quero apenas beber a água límpida da fonte,
sentir os pulmões encherem-se do ar puro da manhã,
ser tocada pela brisa alegre da tarde.

 Quero ver se há,
mais um  botão na minha roseira,
se o beija- flor veio hoje à varanda.
Quero ver o gato espreguiçar-se,
docemente, aos meus pés;
o cachorrinho sorrir, abanando a cauda,
feliz por me ver.
E, poder contemplar, ternamente, 
o rosto de cada ser amado.  

 

Eu não quero ser nada!
O meu tempo de ser alguma coisa já passou.
Quero apenas ver o que o dia me oferece hoje,
e o que dá para fazer agora.
Vivo apenas o que o dia me traz,
quando o Sol reflete,
calidamente, na minha janela.
 Déa Miranda

domingo, 13 de maio de 2012

Madrugada adentro


Mulher e filhos dormindo.
Escuridão branda, sem véu.
E eu aqui sozinho,
madrugada adentro.

Um sax começa a soprar ao fundo
notas sombrias,
que aos poucos se iluminam
em fogo,
vida,
mar negro estrelado.

Eu na madrugada,
em corpo
de mãos leves,
pés soltos nus no piso de madeira,
barba por fazer,
olhos abertos serenos –

Sozinho em corpo,
mas não só.

Minhas companhias:
eu em paz,
eu alegre,
eu soturno,
eu sem pensamento,
eu deserto enfeitiçado,
eu lago profundo gelado nas montanhas tristes da Escócia,
eu terra cinza escura de colinas medievais,
eu mundo,
eu passado força e vida ancestrais...

Ao meu lado,
abertas,
Clarice,
e uma garrafa de vinho tinto deixando-se ser,
sua cor escura brilhante,
seu passado distante,
aroma doce de festas romanas na Gália,
sabor intenso,
Douro.

Ao fundo,
um jazz “suave-noturno” (Kerouac),
notas negras
que escorrem leves,
cheias de luz.

Na estante,
tomados de paixão,
espíritos iluminados me espreitam pelas frestas do tempo e do espaço.

Clarice aos meus ouvidos sussurra:

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”.

(Qual deles se aproximou mais disso que não tem nome?).

Mistério.

O que eu desejo é o mistério de mim,
de tudo,
é respirar sem ter que ir à tona –
é estar o tempo todo à tona,
fora da matéria espessa fervente ou gelada demais
dos compromissos inadiáveis,
dos palcos da vida (onde bajular e fingir parecem matéria de sobrevivência),
do sucesso a alcançar,
para os outros,
para a imagem de si

– máscaras.

O que eu desejo é estar no meu próprio elemento,
completamente livre do peso e da dor de não ser eu.

Agora,
neste quarto que se abre aos meus olhos,
do tamanho do mundo,
vejo na entrada,
junto à porta,
amontoados:
trapos, pedras, espinhos, penas, cascas e peles
do não-eu –

Ser livre é isso? –

Despojar-se...

O jazz sou eu,
Clarice sou eu,
minha família sou eu,
o amor dos que me amam sou eu,
ser professor sou eu,
escrever sou eu,
este poema (ou sei lá o que isto seja) sou eu,
este vinho,
esta paz,
esta ausência de tudo que não importa,
de tudo que não me acrescenta nem me tira –

tudo isso sou eu

– sozinho em corpo, mas não só,

madrugada adentro.

Flávio Marcus da Silva

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Posse da nova Diretoria da Academia de Letras de Pará de Minas





No dia 28 de abril de 2012, na Biblioteca Pedro Salles, foi realizada a cerimônia de posse da nova diretoria da ALPM - Academia de Letras de Pará de Minas eleita em reunião realizada no dia 17/03/12, gestão 2012-2015.

Nessa data, tomaram posse os acadêmicos:

Presidente: Valmir José da Costa Diniz
Secretário: Flávio Marcus da Silva
Secretária Adjunta: Regina Maria Melo Marinho Ferreira
Tesoureira: Maria Déia Miranda Viegas Nacif

Conselho Fiscal:
Geraldo Fernandes Fonte Boa
Márcio Simeone Henriques
Terezinha Almeida Melo Pereira

terça-feira, 1 de maio de 2012

BLOG ESTILO DE JOGO.: RESENHA: A COPA DO MUNDO SUMIU!

BLOG ESTILO DE JOGO.: RESENHA: A COPA DO MUNDO SUMIU!: Existem meias verdades do setor editorial e livreiro do nosso Brasil. Estou divulgando, resenhando, e já fiz até assessoria de imprensa...

Formigas e lagartixas



Déa Miranda

Alguns textos que lemos em nossa infância nos marcam tanto que nunca se apagam da nossa memória. Costumamos nos lembrar sempre deles. Às vezes são até textos extremamente simples, sem atrativos, que passam despercebidos à maioria e para alguns são sempre lembrados.
            Há muitos anos, li em um dos livros colegiais uma história da formiguinha, escrita por Godofredo Rangel. Ele narrava a história de uma formiguinha doceira que o “visitava” todos as noites à hora em que ele habitualmente escrevia. Ela surgia de um dos cantos da mesa, atravessava-a, passando sobre o papel e desaparecia apressada. Ele foi se afeiçoando a ela e o dia em que ela não apareceu ficou imprestável, teve que depor a pena, cheio de apreensões. Esperou por ela por várias noites e ela nunca mais voltou.
Comigo também aconteceu um caso com formigas. Apesar de se tratar das mesmas personagens, o meu é bem diferente e até engraçado. Certa vez, eu me levantei no meio da noite para dar remédio a um dos meus filhos. Era um xarope de um vermelho intenso. Sonolenta, coloquei o copinho com um restinho do remédio sobre a mesa, sem me dar ao trabalho de lavá-lo. Mais tarde, meu filho pediu água. Fui até a cozinha e vi algumas formigas doceiras, aquelas amareladas e grandes, que possuem o corpo meio transparente, sobre a mesa de mármore branco. Apesar de não ser o famoso mármore de Carrara, era de um branco bastante intenso. Por causa disso, o contraste delas com a pedra estava bem destacado. Percebi que estavam estranhas. Reviravam-se, como se estivessem tontas. Parecia que tinham perdido o controle do corpo. Tinha momentos em que elas reviravam cambalhotas e depois tentavam se manter em pé. Notei que a segunda metade dos seus corpos estava vermelha como um minúsculo balão cheio de suco de groselha. Nesta hora, olhei para o copo-medida do xarope e vi que ele se encontrava totalmente vazio. Compreendendo o ocorrido, comecei a rir sozinha no silêncio da noite e falei com elas: “Quem mandou vocês roubarem xarope?” Se soubessem que a prova do crime ia ficar tão evidente, não teriam cometido o delito. Evidente nos dois sentidos: no efeito sobre elas (pareciam meio dopadinhas) e na transparência púrpura dos seus corpos. Mas, coitadinhas, caíram como patinhos!
Certa vez, passei a observar a vida de uma lagartixa que todas as noites saía do seu esconderijo, debaixo do prato que sustentava o lustre. Ela se posicionava esperando os mosquitos que circulavam a lâmpada. Ficava totalmente imóvel e, de repente, dava um salto, semelhante ao bote de uma cobra e rapidamente pegava o inseto. Permanecia ali até se manter bem alimentada e depois entrava novamente para sua “casa”. Era interessante observar seu ritual diário de sair da toca. Não saía de uma vez. Surgia primeiro um pedacinho da cabeça, daí uns segundos ia aparecendo mais um pedacinho dela. Depois de uma pausa cautelosa, o corpo ia começando a despontar. Outra parada estratégica para sondar o ambiente. E assim lentamente ia surgindo todo o corpo. Isso se repetia todas as noites, num mesmo horário. Um dia também ela não apareceu mais e fiquei imaginando qual teria sido o fim daquela cautelosa lagartixa. Teria tido uma morte natural ou algum predador conseguira pegá-la num momento de descuido? E assim, como Godofredo Rangel, eu também esperei por ela e nunca mais a vi.