José Roberto Pereira
Cadeira n.º 12
Eu tenho uma cicatriz
enorme na minha perna direita. Ela é saliente, está abaixo do joelho e circunda
a perna quase toda. Originou-se de um corte profundo em que o osso ficou
exposto. Na parte
mais silente, ainda é possível reconhecer as pontas pontiagudas
e afiadas do arame farpado. Pressionado, o arame foi entrando na minha pele,
cortando a carne até descobrir parte do osso. A princípio, não senti dor. Não durou
mais que dois minutos o tempo de eu ser arremessado, espremido contra o arame e
cortado. Não sentia a dor do corte nem gritava. Estava emudecido pelo pavor de
ter um touro chifrando-me as costas e comprimindo-me com toda a força que
conseguia contra os fios de arame farpado. Eu sentia sua cabeça, seu hálito, os
pelos grossos e os chifres, que também atingiam minha cabeça, mas não percebia minha
pele sendo cortada. Antes, eu estava
sentado na traseira de um carro de boi. Minha tia Maria Custódia conduzia a
junta de bois que nos levava. Ela, em pé sobre a carroça, guiava os animais com
a ajuda de uma vara que continha um ferrão na ponta. Saímos do terreno do meu
avô, passamos por uma porteira que foi aberta por mim e entramos em terras do
vizinho, o senhor Nereu. Foi só o tempo de eu me sentar novamente no fundo da
carroça, após ter fechado a porteira, segurar-me nos fueiros e ficar com as
pernas balançando no ar...
Fomos surpreendidos.
Um touro surgiu entre moitas do pasto, pulou para dentro da estrada e veio com
tudo para cima dos bois que puxavam a carroça, presos na canga... Houve um
princípio de briga, e o carro de boi ziguezagueou na estrada, levantando poeira.
Seguidamente, um solavanco forte, e o carro foi de encontro à cerca de arame. Quando
percebi, já estava sendo pressionado pela cabeça do animal raivoso contra os fios
de arame...
Subitamente, um dos
fios, o que cortava minha perna, arrebentou... Fui jogado para o outro lado da
cerca, numa palhada de milho. Só então percebi o corte. Tive um princípio de
pânico. Mesmo com cinco anos de idade, eu entendi a gravidade da ferida e me
dei conta de que tinha que sair dali às pressas. Num instinto de sobrevivência,
voltei pela mesma abertura do fio arrebentado, único lugar que me daria acesso
novamente à estrada. Já não era o touro que me despertava medo, era o corte
profundo que exibia tão descabidamente parte do osso da minha perna. Nem pensei
que poderia ser atacado pelo animal novamente, eu só precisava sair dali para
estancar o sangue. Precisava ir em busca de qualquer pessoa que pudesse me
acudir. Eu tinha ciência de que precisava chegar até alguém para ser salvo. Não
vi nem ouvi minha tia... Norteado pelo
instinto de sobrevivência que me tomava por inteiro, incrédulo em relação a qualquer
outro perigo, passei, com toda rapidez que pude, pelos animais que ainda
lutavam. Venci o trajeto entre eles e a porteira, correndo, ora com a perna
cortada suspensa no ar, ora apoiando-a levemente no chão empoeirado. Passando por
entre as tábuas da porteira, corri o
quanto consegui ainda sem chorar ou gritar... Até que cheguei ao terreiro da
casa do meu avô materno, Francisco. Dei de encontro com minha tia Lutinha. Ela carregava
latas cheias d’água para os porcos. Quando olhou a minha perna, ficou em
choque. Desnorteada, jogou um pouco de água sobre o corte da perna. Só então
meu grito saiu. Vi outros cortes e arranhões pelo meu corpo. Minha cabeça, a
outra perna, as costas doíam, mas o corte na perna direita, com a pele
desbeiçada, me impressionou... Senti uma dor tão intensa que perdi o fôlego.
Tive um apagão...
Tenho uma vaga lembrança
de meus pais e tios, depois disso, no meu entorno, e de mim ainda de pé, no
terreiro, apoiado em alguém. Não tenho recordação do paradeiro, naquele dia, da
tia Maria Custódia...
Em seguida, meu pai
me pegou nos braços e saiu da casa do meu avô, correndo, em direção à nossa
casa, seguido pela minha mãe. Eu passei meu braço em volta do pescoço dele numa
tentativa de travar meu corpo, pois os solavancos dos passos apressados causavam
dor em todos os cortes. Eu já não chorava, não conseguia. Só queria me livrar
das feridas. Passamos novamente pela porteira, pelos bois que já estavam mais
apaziguados, e seguimos ora correndo, ora com passadas rápidas. O trajeto entre
as casas era longo, sinuoso, com morros íngremes e descidas escorregadias cheias
de cascalho. Meu sangue tingia o sujo da roupa do meu pai, que, antes do
acontecido, estava trabalhando em lavoura de tomate. Sua camisa estava
encharcada do meu sangue e de suor. O fôlego lhe faltava nas subidas íngremes.
Talvez meu corpo machucado pesasse mais a cada passo dado. Doíam-lhe as costas,
sangravam meus cortes... A dor que eu sentia era menor que o desejo de me
livrar dos ferimentos. Minha mãe corria, tentando nos acalcar. Às vezes, ela desaparecia do meu campo de
visão. Em alguns momentos, conseguia correr quase ao nosso lado. Quando me olhava,
chorava... Chorávamos ela e eu, menos meu pai, que só queria correr até nossa
casa. O trajeto entre as casas, que ficavam em lugarejos diferentes, durou uns
quarenta minutos. Tive outro apagão.
Não tenho lembrança
da chegada à minha casa, da reação da minha avó Adelina ao me ver tão machucado.
E nem sei como apareceu no lugarejo onde morávamos, naquele idos, final dos
anos de 1970, um carro que, milagrosamente, nos levou ao hospital, na cidade. Automóvel
por aquelas bandas era uma raridade. Depois de uma hora dentro do veículo,
chegamos onde alguém, por fim, podia me salvar. Tive outro apagão.
Acordei na cama do
hospital, com enfermeiros e médicos ao meu redor, dentro da sala cirúrgica.
Percebi que estava amarrado. Gritei profundamente, tomado por pavor... Outro
apagão. Recobrei os sentidos. Minha mãe estava com seu rosto colado ao meu,
tentando me acalmar, dentro da sala cirúrgica. Suas lágrimas se misturavam às
minhas. Desisti de tentar manter meus olhos abertos...
Acordei na casa da
minha avó paterna, Adelina, onde morávamos, com a cabeça encostada ao peito do
meu pai. O touro não havia nos vencido. Nem em pensamentos, nós três sequer cogitamos
a hipótese de que o animal poderia nos vencer. Agarramos-nos uns aos outros e o
vencemos; mas, emocionalmente estávamos devastados.
Durante muitos anos,
eu só dormia encostado ali, no peito do meu pai. Ele dormia em posição fetal e
eu ainda colocava meus pés entres suas pernas. Era o único lugar que me fazia sentir
mais forte que o touro.
(Desejo um feliz Dias
dos Pais a todos os papais e a todas às mães que também são pais. Nossos
heróis!!)