segunda-feira, 23 de março de 2020

O cheiro de um abraço

Geraldo Phonteboa
Cadeira n.º 14


Ainda era muito cedo, embora não sabia olhar relógio, mas sabia que era cedo, pois o sol ainda não havia se mostrado completamente. O som de fora já chegava aos meus ouvidos: gato miava por perto da janela, o perdigueiro “Tião” latia bravamente perto dos bezerros. Ao longe podia ouvir os mugidos das vagas que estavam, certamente, perto do curral. Provavelmente meu pai, já estava na lida com as vacas a tirar-lhe o leite. Eu sempre gostei de acordar assim, de forma natural e ficar ouvindo e identificando os sons que vinham de fora. Achava muito interessante... alguns sons eram mais difíceis, principalmente os de passarinhos, afinal eram muitos tipos de pássaros e muitos deles tinham vozes parecidas.

Pouco depois, ouvi passos sobre o assoalho da casa e pelo ritmo era mamãe, que provavelmente viria me apressar. Afinal era preciso sair da cama, fazer a higiene matinal, tomar o café da manhã e ir para a escola. Esta rotina não me animava muito, eu possuía outras preferências. Mesmo sabendo que deveria fazer, aguardei minha mãe chegar ao quarto e colocar-me para fora da cama, afinal era mais uma oportunidade de identificar os sons produzidos dentro de casa e confrontá-los com os sons que vinham de fora. Era uma confusão dinâmica e rica que parecia uma sinfonia de dissonantes. E meus ouvidos tentavam identificar harmonias e ritmos de tal forma que transformassem aqueles barulhos em melodias.

Minha mãe batia na porta do quarto ao lado e, enquanto batia, misturava aos sons da batida na madeira um “Bom dia para quem é de bom dia!” com uma voz suave. E a resposta era estridente, para não dizer gritado: “Bom dia, pois eu sou de bom dia”!. Era minha irmã Maria Luiza em resposta à minha mãe. Em seguida minha mãe ditava uma sequência de afazeres para que minha irmã providenciasse enquanto ela seguia sua rotina. Agora era a vez de meu irmão mais velho, e lá seria mais rápido, minha mãe batia na porta e repetia a mesma frase “Bom dia para quem é de bom dia” e aguardava alguma resposta, mas não abria a porta. Repetia outra vez até obter uma resposta. E a resposta era quase inaudível, um resmungo quase sempre. E então era a minha vez. E eu fechava os olhos e fazia de conta que estava dormindo. Minha mãe batia na porta, dizia as palavras costumeiras do bom dia e ia logo entrando, eu permanecia imóvel aguardando que ela viesse até minha cama para sacudir-me para que eu acordasse. E mesmo antes de me manifestar ela já se afastava ia até a janela e a abria, inundando meu quarto com a luz do dia.

Enquanto isso eu me assentava na cama e aguardava minha mãe para um abraço que nem sempre acontecia... abraço de minha mãe variava com seu humor. Tinha dias que eram azedos em seu temperamento e nesses dias não havia abraços e os “Bom dia” vinha só e seco. Mas hoje não, hoje tinha abraço, afinal o “bom dia” foi inteiro e completo. Aquele era um dia que carregaria o cheiro daquele abraço.

Quando minha mãe estava com o temperamento azedo era um dia difícil. Teria que ficar mais quieto, policiar-me para não provocar sua ira e evitar sofrimentos, mas o mais difícil era ficar sem aquele abraço matinal. Era muito simples e rápido, mas como era gostoso aquele momento, e o cheiro de minha mãe preenchia meu dia e me dava segurança. O abraço de minha mãe era para mim um porto seguro e seu cheiro representava para mim a memória que ia sempre comigo. E quando minha mãe não me abraçava pela manhã eu sofria e talvez porque minha mãe também sofria.

Talvez minha mãe nem percebia o bem que me fazia aquele abraço. Talvez ela não tinha consciência da importância deste abraço, mas tudo era uma percepção, uma sensibilidade leve e frágil de um menino que era perturbado pelos sons de seu cotidiano. O abraço de minha mãe era mais, muito mais que um abraço, era uma oportunidade de dar um ritmo a tudo aquilo, promovia a harmonia necessária e acalentava os barulhos do mundo. Em um simples abraço – curto e pleno – eternizava-se no dia e equilibrava as percepções do mundo. Não precisava de mais nada a não ser aquele curto e eterno abraço. E neste abraço o cheiro de minha mãe torna-se inerente ao meu corpo, aderia às minhas roupas e eternizava-se em minha pele, em meus pelos, em minhas narinas.

E o dia seguia e trazia seus desafios que eu podia enfrentar. O primeiro deles era o caminho para a escola que ficava a seis quilômetros de distância, em estrada de terra, e onde teria que atravessar três pontes e alguns pequenos córregos que cortavam a estrada. Era preciso abrir porteiras e passar por entre campos e pastos com vacas deitadas nos leitos das estradas, cães que nos espiavam atentos passando pelo caminho, e algumas cobras que vez por outra tínhamos a infelicidade de encontrar. Mas eram realidades naturais para quem viviam por aquelas bandas. Estes desafios eram os mais leves e suaves a serem enfrentados por nós. Os verdadeiros desafios ocorriam nas salas de nossa escola. Mas esta é uma outra história que contarei em uma outra hora.

Quero voltar ao relento de minha casa e aos braços de minha mãe. Toda a manhã, seguido ao abraço, minha mãe preparava a roupa que deveria usar para a escola ou para o dia comum, quando não havia escola. Ajudava a arrumar a minha cama, ensinando-me desde cedo a organizar meu quarto a começar com a minha cama. Depois mandava eu ir para o banheiro para a higiene pessoal. Nesse momento minha mãe saia de meu quarto e voltava a cozinha para preparar o café da manhã.

Certo de que tudo estava dentro da normalidade, minha mãe preparava o café de cada um de nós. O leite, o café, o biscoito frito, o pão caseiro, a manteiga natural do leite. Não havia mesa. Minha mãe preparava tudo ao pé do fogão à lenha. E no entorno, colocava os banquinhos e as cadeiras, meu pai, enfim, entrava cozinha adentro, passava a mão em nossas cabeças, era o carinho que lhe era possível naquele momento, sentava e comíamos juntos. Na época do inverno era então melhor, pois nos aquecíamos enquanto ocorriam o desjejum.

Depois do café da manhã nos separávamos, eu e meus irmãos íamos para a escola, meu pai continuava na lida da fazenda e minha mãe nos trabalhos da casa. E eu levava comigo o cheiro do abraço de minha mãe, um cheiro com sabor de café da manhã ao pé do fogão com os afagos de meu pai. O abraço de minha mãe era catalizador de todo aquele momento vivido pelos meus primeiros anos de vida. O abraço de minha mãe, hoje, tem cheiro de saudade, mas ainda está em mim, ainda presente.

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quinta-feira, 12 de março de 2020

As cores

Conceição Cruz
Cadeira n.º 4



Então, 
as cores queriam saber:
- qual é a mais interessante?

Deve ser o azul!
Basta olhar o céu,
de Leste a Oeste,
de Norte a Sul…

Ou
o vermelho há de ser!
Olhe-se no espelho!
Sinta seu coração bater!

O sol nasce para todos,
Dá tudo de si, 
sem nada em troca pedir!
Amigo de todo hora,
Tal qual o amor - grande elo!
De sorte, será o AMARelo!

Será mesmo esta?
Veja a floresta!
Quanto verde -
tamanha esperança - ali
se manifesta!

Ah, não!
Só pode ser o lilás!
O tempo sempre passa, 
torna tudo tão fugaz,
só não deixa a memória para trás!

Talvez seja a laranja!
Lar de anjos?
Cor da Alegria que a tristeza
espanta!

- Na ausência da luz,
toda noite, crio toda 
e qualquer escuridão!
Desaparece o sol,
os céus, a floresta, a vida...
Tudo, tudo, até mesmo 
um enorme elefante! 
Fala a cor preta triunfante!

Exclama a violeta:
- Quanta falácia!
A vida é uma festa!
Se sentimento tivesse cor
seria expressa por esta!
Afinal, tudo que é matéria passa!
Só o que é eterno VIVIfica!
Saudade!

Sem mais perguntas...
O branco também se aproxima...
Em busca da Verdade!

Brilha a LUZ,
compondo-as,
numa melhor refração…

Assim!
Afastou-se a escuridão!

Um lindo arco-íris
surgiu no céu…

E agora?
Qual é a sua opinião?

Então?

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domingo, 1 de março de 2020

Uma Flor, Um Véu: Desertos

Geraldo Phonteboa
Cadeira n.º 14



Hoje minha cidade foi alvo de um bombardeio. Todas as casas ficaram deformadas e se transformaram em pesadelos de desarranjos. Eu, mesmo com o peito pesado de dor, ainda respiro por graça de estar em um abrigo nos arredores da cidade. Não sei da necessidade de transformar minha cidade em forma de pesadelo. Ouvi qualquer coisa, dias antes, de que aviões realizariam tal obra, mas não sei porque e nem sei o que são aviões. Disseram também, que era do exército francês. Sequer tenho ideia de onde fica a França. Nunca ouvi falar nesse nome. Não vi o processo de mudança de minha cidade. Só ouvi o barulho que, de tão alto, fez tremer as paredes de meu coração. Um terror!

Minha mãe me abraçou, colocou suas mãos sobre os meus ouvidos e apertou minha cabeça sobre o seu ventre. Senti que ela queria me colocar dentro dela, podia ouvir suas entranhas, o que de certa forma me acalmava. Tive medo intenso!

Depois que consegui ouvir silêncios saímos de onde estávamos e o que vimos foi a mais completa desarrumação. Tudo estava no chão. Era quase pó. E o vento já a transformava em nuvem de poeira, pior que as tempestades de areia, que são comuns nesta região. Ficamos ali, à maneira de lagarto sobre pedras, paradas e olhando, sem saber o que fazer. Não era ainda nem oito horas da manhã e eu não tinha feito o desjejum. Não tinha como prepará-lo.

Mamãe não disse nada. Mas eu podia perceber toda sua perturbação interior, ela era só sentimento. Suas emoções escorriam sobre sua face, embora só se fosse possível perceber se a olhasse demoradamente. Seus olhos estavam perdidos, afogados nas próprias lágrimas. Parados. Os músculos de seu rosto, trêmulos! O manto de sua cabeça havia deitado sobre sua nuca. Sua cabeça descoberta era sinal de incompreensão. Seu semblante, embora pleno de tristeza, não demonstrava desespero. Eu estava cansada de ver toda aquela desconstrução, o rosto de mamãe era ainda mais belo e olhando-o pude guardar comigo aquelas expressões, e tinham seus significados.

Percebendo que eu a olhava, voltou-se para mim. Segurou minha mão e sussurrou docemente:

─ Vamos!

Puxou-me e deixamos o que restou da cidade para traz, agora ela seria só memória. Não disse mais nada. Caminhamos juntas e sós por mais de uma hora. Dando conta de meu cansaço, pegou-me em suas costas e seguiu a passos lentos por algum tempo.

Depois de algumas distancias, imprecisas, mas longas. Parou. Tirou-me de si e sentou-se em uma pedra que estava impassível a olhar a estrada. Era preciso descansar. Ficou ali, em um silêncio profundo. Os olhos fixos no chão e eu, de pé, ao seu lado, repousei minha mão direita em seu ombro e acariciava-o com os dedos. Ela reagiu com um sorriso tímido. Meu corpo já se alimentava de si e boca era só deserto, mas não reclamava, afinal não tínhamos nada e não havia o que fazer a não ser seguir em frente.

O sol ardia forte e queimava nossa pele e esta situação iria piorar, pois ainda era meio dia, era preciso encontrar um abrigo para passar a tarde. Uma sombra qualquer já era alento. A próxima cidade, se não tivesse sido deformada, estava a dois dias de lonjuras. Então era preciso romper estas distâncias. Mamãe ergueu-se com dificuldades e já com os pés doloridos puxou-me novamente sem dizer nada. Caminhamos mais uma hora até que chegamos em um agrupamento de arbustos no meio de desertos. Era o alento que esperávamos ao calor. Saímos da estrada e nos reunimos a eles. Ficamos ali a tarde toda. Minha mãe cantava cantigas de sua infância e ainda insistia para eu cantar junto. Depois de um tempo, passou a mão em meu rosto suavemente - pude sentir o seu cheiro - Esboçou um novo sorriso e disse com a suavidade de sempre:

 ─ Você é linda!

Eu não entendi o porquê de tais palavras. Sorri para ela e nos olhamos profundamente. Não dissemos mais palavras. Elas não eram necessárias. E assim nos alimentamos de silêncio, esqueci da fome e da sede.

O sol, após vencer considerável distância, já estava em sua trajetória de fim do dia; voltamos para estrada e continuamos nosso destino. Tudo era silêncio, a única coisa que ouvíamos era o som de nossas sandálias sobre as pequenas pedras da estrada. Foram mais duas horas de caminhada, até que inesperadamente mamãe parou. Eu não entendi. Olhei para os dois lados da estrada e não vi nada. Olhei para ela e ela estava imóvel. Paralisada. Fiquei, por um tempo, sem entender. Até que ela voltou-se para mim, tirou o véu de sua cabeça e colocou sobre a minha. E olhando-me nos olhos disse:

─ Guarde com muito cuidado este véu; enquanto você levá-lo contigo eu sempre estarei por perto. Ele tem poderes de aproximação. Não desista nunca de acreditar em mim.

O véu era de um tecido fino, com estampas de flores raras do deserto. E estava pleno de seu cheiro.

Após enrolar seu véu em mim ela caiu e morreu. Foi então que percebi que ela estava ferida um pouco abaixo do busto direito e durante o dia todo sua vitalidade foi escapando e sendo subtraída; ela não conseguia mais resistir. Foi então que percebi que sua companhia até aquele lugar era o jeito que ela encontrou para estar mais tempo comigo. Ela provavelmente se feriu quando apertava minha cabeça contra o seu ventre. Ela havia sido atingida por destroços da deformação. Fiquei um tempo sentada sobre os calcanhares ao lado de seu corpo. Fiz-lhe um carinho em seus cabelos negros e pedi-lhe pela última vez sua benção. E mesmo não obtendo resposta, não duvidei de sua presença. 

Deixei o corpo de minha mãe lá no meio de nosso destino, mas não segui sozinha. Passei a noite ao relento e senti muito frio, mas precisava viver. Dois dias depois cheguei à cidade vizinha e fui acolhida por um grupo de enfermeiros e médicos que trabalhavam atendendo os feridos daquela guerra. Guerra que não era minha, mas que também não sei de quem era. Sei, no entanto, que trago comigo o véu e nele minha mãe.