Geraldo Phonteboa
Cadeira n.º 14
Ainda era muito cedo, embora não sabia
olhar relógio, mas sabia que era cedo, pois o sol ainda não havia se mostrado
completamente. O som de fora já chegava aos meus ouvidos: gato miava por perto
da janela, o perdigueiro “Tião” latia bravamente perto dos bezerros. Ao longe
podia ouvir os mugidos das vagas que estavam, certamente, perto do curral.
Provavelmente meu pai, já estava na lida com as vacas a tirar-lhe o leite. Eu
sempre gostei de acordar assim, de forma natural e ficar ouvindo e
identificando os sons que vinham de fora. Achava muito interessante... alguns
sons eram mais difíceis, principalmente os de passarinhos, afinal eram muitos
tipos de pássaros e muitos deles tinham vozes parecidas.
Pouco depois, ouvi passos sobre o
assoalho da casa e pelo ritmo era mamãe, que provavelmente viria me apressar.
Afinal era preciso sair da cama, fazer a higiene matinal, tomar o café da manhã
e ir para a escola. Esta rotina não me animava muito, eu possuía outras
preferências. Mesmo sabendo que deveria fazer, aguardei minha mãe chegar ao
quarto e colocar-me para fora da cama, afinal era mais uma oportunidade de
identificar os sons produzidos dentro de casa e confrontá-los com os sons que
vinham de fora. Era uma confusão dinâmica e rica que parecia uma sinfonia de
dissonantes. E meus ouvidos tentavam identificar harmonias e ritmos de tal
forma que transformassem aqueles barulhos em melodias.
Minha mãe batia na porta do quarto ao
lado e, enquanto batia, misturava aos sons da batida na madeira um “Bom dia
para quem é de bom dia!” com uma voz suave. E a resposta era estridente, para
não dizer gritado: “Bom dia, pois eu sou de bom dia”!. Era minha irmã Maria
Luiza em resposta à minha mãe. Em seguida minha mãe ditava uma sequência de
afazeres para que minha irmã providenciasse enquanto ela seguia sua rotina.
Agora era a vez de meu irmão mais velho, e lá seria mais rápido, minha mãe
batia na porta e repetia a mesma frase “Bom dia para quem é de bom dia” e
aguardava alguma resposta, mas não abria a porta. Repetia outra vez até obter
uma resposta. E a resposta era quase inaudível, um resmungo quase sempre. E
então era a minha vez. E eu fechava os olhos e fazia de conta que estava
dormindo. Minha mãe batia na porta, dizia as palavras costumeiras do bom dia e
ia logo entrando, eu permanecia imóvel aguardando que ela viesse até minha cama
para sacudir-me para que eu acordasse. E mesmo antes de me manifestar ela já se
afastava ia até a janela e a abria, inundando meu quarto com a luz do dia.
Enquanto isso eu me assentava na cama e
aguardava minha mãe para um abraço que nem sempre acontecia... abraço de minha
mãe variava com seu humor. Tinha dias que eram azedos em seu temperamento e
nesses dias não havia abraços e os “Bom dia” vinha só e seco. Mas hoje não,
hoje tinha abraço, afinal o “bom dia” foi inteiro e completo. Aquele era um dia
que carregaria o cheiro daquele abraço.
Quando minha mãe estava com o
temperamento azedo era um dia difícil. Teria que ficar mais quieto, policiar-me
para não provocar sua ira e evitar sofrimentos, mas o mais difícil era ficar
sem aquele abraço matinal. Era muito simples e rápido, mas como era gostoso
aquele momento, e o cheiro de minha mãe preenchia meu dia e me dava segurança.
O abraço de minha mãe era para mim um porto seguro e seu cheiro representava
para mim a memória que ia sempre comigo. E quando minha mãe não me abraçava
pela manhã eu sofria e talvez porque minha mãe também sofria.
Talvez minha mãe nem percebia o bem que
me fazia aquele abraço. Talvez ela não tinha consciência da importância deste
abraço, mas tudo era uma percepção, uma sensibilidade leve e frágil de um
menino que era perturbado pelos sons de seu cotidiano. O abraço de minha mãe
era mais, muito mais que um abraço, era uma oportunidade de dar um ritmo a tudo
aquilo, promovia a harmonia necessária e acalentava os barulhos do mundo. Em um
simples abraço – curto e pleno – eternizava-se no dia e equilibrava as
percepções do mundo. Não precisava de mais nada a não ser aquele curto e eterno
abraço. E neste abraço o cheiro de minha mãe torna-se inerente ao meu corpo,
aderia às minhas roupas e eternizava-se em minha pele, em meus pelos, em minhas
narinas.
E o dia seguia e trazia seus desafios
que eu podia enfrentar. O primeiro deles era o caminho para a escola que ficava
a seis quilômetros de distância, em estrada de terra, e onde teria que
atravessar três pontes e alguns pequenos córregos que cortavam a estrada. Era
preciso abrir porteiras e passar por entre campos e pastos com vacas deitadas
nos leitos das estradas, cães que nos espiavam atentos passando pelo caminho, e
algumas cobras que vez por outra tínhamos a infelicidade de encontrar. Mas eram
realidades naturais para quem viviam por aquelas bandas. Estes desafios eram os
mais leves e suaves a serem enfrentados por nós. Os verdadeiros desafios
ocorriam nas salas de nossa escola. Mas esta é uma outra história que contarei
em uma outra hora.
Quero voltar ao relento de minha casa e
aos braços de minha mãe. Toda a manhã, seguido ao abraço, minha mãe preparava a
roupa que deveria usar para a escola ou para o dia comum, quando não havia
escola. Ajudava a arrumar a minha cama, ensinando-me desde cedo a organizar meu
quarto a começar com a minha cama. Depois mandava eu ir para o banheiro para a
higiene pessoal. Nesse momento minha mãe saia de meu quarto e voltava a cozinha
para preparar o café da manhã.
Certo de que tudo estava dentro da
normalidade, minha mãe preparava o café de cada um de nós. O leite, o café, o
biscoito frito, o pão caseiro, a manteiga natural do leite. Não havia mesa.
Minha mãe preparava tudo ao pé do fogão à lenha. E no entorno, colocava os
banquinhos e as cadeiras, meu pai, enfim, entrava cozinha adentro, passava a
mão em nossas cabeças, era o carinho que lhe era possível naquele momento,
sentava e comíamos juntos. Na época do inverno era então melhor, pois nos
aquecíamos enquanto ocorriam o desjejum.
Depois do café da manhã nos separávamos,
eu e meus irmãos íamos para a escola, meu pai continuava na lida da fazenda e
minha mãe nos trabalhos da casa. E eu levava comigo o cheiro do abraço de minha
mãe, um cheiro com sabor de café da manhã ao pé do fogão com os afagos de meu
pai. O abraço de minha mãe era catalizador de todo aquele momento vivido pelos
meus primeiros anos de vida. O abraço de minha mãe, hoje, tem cheiro de
saudade, mas ainda está em mim, ainda presente.
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