Geraldo Phonteboa
Cadeira n.º 14
Hoje minha cidade foi alvo de um
bombardeio. Todas as casas ficaram deformadas e se transformaram em pesadelos
de desarranjos. Eu, mesmo com o peito pesado de dor, ainda respiro por graça de
estar em um abrigo nos arredores da cidade. Não sei da necessidade de
transformar minha cidade em forma de pesadelo. Ouvi qualquer coisa, dias antes,
de que aviões realizariam tal obra, mas não sei porque e nem sei o que são
aviões. Disseram também, que era do exército francês. Sequer tenho ideia de
onde fica a França. Nunca ouvi falar nesse nome. Não vi o processo de mudança
de minha cidade. Só ouvi o barulho que, de tão alto, fez tremer as paredes de
meu coração. Um terror!
Minha mãe me abraçou, colocou suas mãos
sobre os meus ouvidos e apertou minha cabeça sobre o seu ventre. Senti que ela
queria me colocar dentro dela, podia ouvir suas entranhas, o que de certa forma
me acalmava. Tive medo intenso!
Depois que consegui ouvir silêncios
saímos de onde estávamos e o que vimos foi a mais completa desarrumação. Tudo
estava no chão. Era quase pó. E o vento já a transformava em nuvem de poeira,
pior que as tempestades de areia, que são comuns nesta região. Ficamos ali, à
maneira de lagarto sobre pedras, paradas e olhando, sem saber o que fazer. Não
era ainda nem oito horas da manhã e eu não tinha feito o desjejum. Não tinha
como prepará-lo.
Mamãe não disse nada. Mas eu podia
perceber toda sua perturbação interior, ela era só sentimento. Suas emoções
escorriam sobre sua face, embora só se fosse possível perceber se a olhasse
demoradamente. Seus olhos estavam perdidos, afogados nas próprias lágrimas.
Parados. Os músculos de seu rosto, trêmulos! O manto de sua cabeça havia
deitado sobre sua nuca. Sua cabeça descoberta era sinal de incompreensão. Seu
semblante, embora pleno de tristeza, não demonstrava desespero. Eu estava
cansada de ver toda aquela desconstrução, o rosto de mamãe era ainda mais belo
e olhando-o pude guardar comigo aquelas expressões, e tinham seus significados.
Percebendo que eu a olhava, voltou-se
para mim. Segurou minha mão e sussurrou docemente:
─ Vamos!
Puxou-me e deixamos o que restou da
cidade para traz, agora ela seria só memória. Não disse mais nada. Caminhamos
juntas e sós por mais de uma hora. Dando conta de meu cansaço, pegou-me em suas
costas e seguiu a passos lentos por algum tempo.
Depois de algumas distancias,
imprecisas, mas longas. Parou. Tirou-me de si e sentou-se em uma pedra que
estava impassível a olhar a estrada. Era preciso descansar. Ficou ali, em um
silêncio profundo. Os olhos fixos no chão e eu, de pé, ao seu lado, repousei
minha mão direita em seu ombro e acariciava-o com os dedos. Ela reagiu com um
sorriso tímido. Meu corpo já se alimentava de si e boca era só deserto, mas não
reclamava, afinal não tínhamos nada e não havia o que fazer a não ser seguir em
frente.
O sol ardia forte e queimava nossa pele
e esta situação iria piorar, pois ainda era meio dia, era preciso encontrar um
abrigo para passar a tarde. Uma sombra qualquer já era alento. A próxima
cidade, se não tivesse sido deformada, estava a dois dias de lonjuras. Então
era preciso romper estas distâncias. Mamãe ergueu-se com dificuldades e já com os
pés doloridos puxou-me novamente sem dizer nada. Caminhamos mais uma hora até
que chegamos em um agrupamento de arbustos no meio de desertos. Era o alento
que esperávamos ao calor. Saímos da estrada e nos reunimos a eles. Ficamos ali
a tarde toda. Minha mãe cantava cantigas de sua infância e ainda insistia para
eu cantar junto. Depois de um tempo, passou a mão em meu rosto suavemente -
pude sentir o seu cheiro - Esboçou um novo sorriso e disse com a suavidade de
sempre:
─
Você é linda!
Eu não entendi o porquê de tais
palavras. Sorri para ela e nos olhamos profundamente. Não dissemos mais
palavras. Elas não eram necessárias. E assim nos alimentamos de silêncio,
esqueci da fome e da sede.
O sol, após vencer considerável
distância, já estava em sua trajetória de fim do dia; voltamos para estrada e
continuamos nosso destino. Tudo era silêncio, a única coisa que ouvíamos era o
som de nossas sandálias sobre as pequenas pedras da estrada. Foram mais duas
horas de caminhada, até que inesperadamente mamãe parou. Eu não entendi. Olhei
para os dois lados da estrada e não vi nada. Olhei para ela e ela estava
imóvel. Paralisada. Fiquei, por um tempo, sem entender. Até que ela voltou-se
para mim, tirou o véu de sua cabeça e colocou sobre a minha. E olhando-me nos
olhos disse:
─ Guarde com muito cuidado este véu;
enquanto você levá-lo contigo eu sempre estarei por perto. Ele tem poderes de
aproximação. Não desista nunca de acreditar em mim.
O véu era de um tecido fino, com
estampas de flores raras do deserto. E estava pleno de seu cheiro.
Após enrolar seu véu em mim ela caiu e
morreu. Foi então que percebi que ela estava ferida um pouco abaixo do busto
direito e durante o dia todo sua vitalidade foi escapando e sendo subtraída;
ela não conseguia mais resistir. Foi então que percebi que sua companhia até
aquele lugar era o jeito que ela encontrou para estar mais tempo comigo. Ela
provavelmente se feriu quando apertava minha cabeça contra o seu ventre. Ela
havia sido atingida por destroços da deformação. Fiquei um tempo sentada sobre
os calcanhares ao lado de seu corpo. Fiz-lhe um carinho em seus cabelos negros
e pedi-lhe pela última vez sua benção. E mesmo não obtendo resposta, não
duvidei de sua presença.
Deixei o corpo de minha mãe lá no meio
de nosso destino, mas não segui sozinha. Passei a noite ao relento e senti
muito frio, mas precisava viver. Dois dias depois cheguei à cidade vizinha e
fui acolhida por um grupo de enfermeiros e médicos que trabalhavam atendendo os
feridos daquela guerra. Guerra que não era minha, mas que também não sei de
quem era. Sei, no entanto, que trago comigo o véu e nele minha mãe.
Gostei do texto. A presença da mãe foi um alento para mim, durante a leitura... e sua morte, um baque. Tocante!
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