segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Incomunicação trivial


Márcio Simeone

Cadeira n.º 8




Na festa vi você a dançar e pensei: que graça! Outro dia vi quando passava, distraída, na rua principal. Observei muito tempo de longe, alimentando meus sentimentos, meus desejos, coisa à moda antiga. Mas a vida hoje não espera, de jeito nenhum. Entrei num café e lá estava: nossos olhares não se encontraram, pois você se concentrava na pequena tela, onde deslizava seus dedos com agilidade. Fiquei a observar: o movimento dos dedos, suas expressões. Um meio-sorriso, depois a digitar com agilidade. Leva o aparelho perpendicular ao ouvido direito, escuta algo com atenção, balança a cabeça e sorri. Volta a escrever, freneticamente. Em seguida seu semblante está sério, arrasta os dedos devagar sobre a superfície iluminada. Franze os olhos, como a denotar atenção máxima. Depois descontrai de novo. Vira a tela na horizontal, um brilho dançante ilumina sua fronte. Volta à digitação. Ao me levantar, passo por detrás de você e num fragmento de segundo, quando voltei meus olhos para baixo, vi apenas uma série de coraçõezinhos. Achei isso romântico. Fui embora, mas você nem me notou. Tempos depois voltei ao café, com mil pretextos preparados para abordar você, caso aparecesse. Demorou demais. Quando, enfim, entrou no recinto e se dirigiu ao balcão, aproveitei para me postar justo ao seu lado. Ao ver que escolhia uma torta de limão, resolvi pedir uma também. Ocorre que eu adoro, sempre amei, tortas de limão. Já com algo em comum, ia comentar qualquer coisa sobre a qualidade e sabor incomparáveis daquela iguaria, mas você foi mais rápida, sacou seu aparelho e observou alguma mensagem. Devia ser urgente, porque saiu rápido dali, sentou-se ao fundo do salão e ficou a responder, falando sozinha para aquele equipamento, gesticulando discretamente. Nem havia tocado ainda aquele doce. Sentei-me à frente, numa posição favorável para vê-la e, quem sabe, ser visto. Mas seu olhar só se desviou por um instante para tirar um pequeno bocado, que experimentou sem esboçar reação mais significativa. Eu a olhava à vontade, examinando-a ostensivamente. Reparei quando você tirou uma foto da torta de limão e seus dedos escorregaram para lá e para cá. Certamente postara a imagem para alguém que também aprecia as tortas de limão. Fiquei pensando em como fazer você saber que eu também as apreciava e o quanto me sentia bem ao saber dessa grata coincidência. Imaginei, pela reação terna e alegre de seu rosto, que deve ter recebido mais alguns coraçõezinhos em reação à sua postagem. Também desta vez você foi embora sem me notar. Saí com a sensação de que não sou mesmo notável. Não a ponto de concorrer com todos aqueles estímulos da tela brilhante. Mas não desisti. Tornei a voltar ao café até ver você de novo. Esperei que você se sentasse, com uma xícara à sua frente e se concentrasse, como sempre, em sua tela mágica. Encomendei uma torta de limão, que mandei entregar à sua mesa. Sentei-me desta vez mais à distância e fiquei a observar suas reações. O garçom entregou e você ficou surpresa; educadamente deve ter dito que havia um engano, que não pedira aquilo e vi o rapaz apontar para mim. Olhei fixo para você, mesmo de longe, para não perder essa rara oportunidade de ser notado. Balancei muito levemente a cabeça, como que a confirmar: eu mesmo! Esperava que abrisse um sorriso, mesmo que débil, mas você hesitou um instante. Desejei algum gesto em minha direção. Em vão. Apenas mandou ao garçom que me devolvesse a torta de limão. Agora ele vinha, em câmera lenta, ao meu encontro, segurando aquele prato e meu raciocínio travou. De relance vi que você estava lá, dedicada a olhar sua tela, talvez contando para alguém algo estranho que se passara no café. Fiquei estático. Não tinha referências para lidar com aquela situação e um abismo se formou bem no meio do salão. Não olhei mais para você. Quando percebi que já tinha saído, esperei um pouco mais e só então fui embora. Senti-me envergonhado. Dias depois decidi que frequentaria o café com maior assiduidade, mesmo sem crer que você voltaria. Sonhei com você, que acariciava ternamente o meu rosto exibido na tela do seu telefone. Mas como encontrá-la na vastidão do espaço cibernético? De referência ficaram para mim uma festa e uma cafeteria, únicos lugares nos quais poderia seguir seus rastros. Nunca pensei que tivesse alguma vez me notado. Imaginei-me em seu lugar, perturbada por uma torta de limão que aparecera à sua mesa como um apelo destoante e bizarro por atenção. Hoje tenho a revelação: você me notara na festa. Eu estava em sua tela. Tinha sido capturado aquele dia, você me levara consigo, me acariciara o rosto na foto. Eu já estava lá, à sua mesa da cafeteria, embora não soubesse. E você estava à minha mesa, pelo sabor de uma torta de limão. Faltava apenas um elo que o destino, sempre caprichoso, entendeu de prover sem muita demora.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A dor

Ailton José Ferreira
Cadeira n.º 7


A DOR, um sentimento de agonia, um sofrimento sem anestesia, uma paixão à revelia!


A DOR, a nostalgia por um dia, que passou por vidas vazias, sem saber naquilo que se fazia!

A DOR, rebeldia por valentia, um contato abstrato, um fato concreto, a tristeza em aberto, a ferida em progresso, mas a inocência em retrocesso!

A DOR, quando sentimos sem piedade, enfrentamos com a verdade, isto em qualquer idade, mesmo com a fatalidade não esquecemos, porque na mentalidade sempre vivenciaremos, e com o sentimento não esmoreceremos!

A DOR, tristeza que chega e se acomoda, angústia que fica e não se explica e solidão de um dia que nada podia, mas com a chegada da alegria com tudo se fazia, noite adentro se completa a fantasia!

A DOR, quando vem não tem hora, quando fica não se sabe se vai embora!

A DOR, por que ela, senão ela? Por que surge sem avisar? E não preparados ela vem arrasar, e, se preparados, ela vem martirizar!

A DOR sem nexo, por que sentir? Sem complexo, por que insistir? Se a encaramos, às vezes estouramos, se a ignoramos, às vezes nos confortamos!

A DOR, mãe dos sofrimentos, alívio para certos momentos, martírio para alguns tormentos!

A DOR, mãe do suplício, sofrimento nada fictício, sensação de um coração cheio de emoção!

A DOR, um vazio por um fio, um caminho sem conforto, uma cicatriz frequente, que nos faz crescer eternamente!

A DOR, ela vem, ela vai. Ela se esconde e não sabemos onde. Quando aparece a gente estremece, mas a derrotamos com a coragem de um espartano!

A DOR não se esquece, e sempre íntima, de repente ela desaparece!

A DOR de cotovelo, de remorso, de paixão, de raiva, de ciúme, não importa, é dor!

A DOR? O que é a dor? Ela nasce, nos atormenta física ou espiritualmente, nos enfraquece, mas, às vezes, nos fortalece!


                QUE DEUS ABENÇOE A TODOS!

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Flores Mortas

Carmélia Cândida
Cadeira n.º 2



Nos bons tempos,
A casa estava sempre cheia
Muita comida no fogão
Crianças correndo pra lá e pra cá
Mesa cheia aos domingos
A casa era uma alegria
Chegado o tempo da doença
A casa, aos poucos,
Foi ficando vazia
As crianças, crescidas,
Poucas apareciam
Cadê todas aquelas pessoas?
Era apenas uma casa de velhos


Os dias são difíceis
Choro e dor
O sol vai se pondo
Enquanto as flores do jardim minguam


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Numerais

Conceição Cruz

Cadeira n.º 4



Qual número mais nos encanta?

Assim pensava
quando ainda era
uma criança!

0
O zero é
uma bola que rola!
Preste muita atenção!
À esquerda, pouco vale!
Sabia?
À direita, 
vale infinidade!
Mistério e sabedoria!

1
O um
é solitário!
Solitário
como um poste
numa longa avenida,
repleta de gente e de números!
Ah! Que mundo!

2
Com o dois
traço
um pato, 
um ganso,
um pássaro...
Com muita imaginação,
Até um gato!

3
E com o três?
Uma borboleta,
a letra bê de bola,
de bolo, 
de bolacha e
de muitas outras
guloseimas e iguarias!

4
O quatro?
Aprendi que "é uma cadeirinha"!
Mas acho que é um menininho
subindo uma escadinha!

5
Ah! E o cinco?
É coisa engraçada!
Parece uma bola de binóculo!
Que palhaçada!

6
Muito esquisito,
é o número seis!
Coisa sem cabimento!
Um caracol atleta
fazendo alongamento?

7
Veja que enigmático!
Bem magricela 
a esconder 
muitos ângulos!
Assim é o sete
cortado.
Disse cortado,
como era feito
antigamente!

8
Ah! Aí vem
uma pista de autorama,
ou os óculos do vovô?
Ou será 
um biscoito?
Ou o símbolo do universo
deitado e bem preguiçoso?
Afinal,  a que se parece o oito?

9
O nove chega
para completar
a sequência!
Uma serpente voraz
voltando-se 
para trás!

Um... dois... três...
Aí está a ciência:
fechar o ciclo
e recomeçar tudo
outra vez!

Cada número,
quando a outro se junta,
a matemática explica:

soma,

subtrai,

divide

e  multiplica!

Para quem quer
aprender a contar
aqui fica a dica!

Quem gostou
bate palmas
E conta mais uma vez.

Quem entendeu
conta, 
segue adiante,
volta ao início...

A matemática tal a vida,
tem seus arranjos, combinações
e permutações!

Quadrados, círculos, 
triângulos,
pirâmides, 
cubos, trapézios...

Haja algébra, matemática, geometria,
e muita filosofia!

Tudo passa como
numa grande espiral
evolutiva de belos
e predispostos paradigmas!

O que está no fim
também está no princípio!
Quem é sábio
que o diga!
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Imagem: https://publicdomainvectors.org/



terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O que faz um texto ser poesia

Geraldo Phonteboa
Cadeira n.º 14


Um texto é sempre um texto. Uma disposição de palavras carregadas de sentido uma ao lado da outra que vai expressando o pensamento do escritor. Sua intencionalidade, às vezes de forma intensa ou não. A forma como você dispõe estas palavras, como as "alinhavam" vai configurando como este texto será classificado e analisado pelos leitores. Este formato define o estilo literário do texto e, então, torna-se classificado como crônica, como conto, como narrativa, artigo de opinião e, até mesmo, um poema.

Em última análise tudo é texto, só e tão somente só. Mas convenhamos, há textos que o escritor consegue dispor as palavras de tal jeito que os "sons" que eles emitem parecem ter vida própria. A disposição dos sons das palavras, alinhada com outros sons de outras palavras vão compondo a melodia do texto. Estes "sons", às vezes, em sua maior parte, são tão maravilhosos que muda o sentido das próprias palavras utilizadas em sua composição, e então, chegamos a esquecer que estamos lendo um texto.

A poesia, de modo mais específico - por suas características próprias que é o de revelar e ocultar, dizer e não dizer, indicar e indiciar, promover e revolver à curva da obscuridade - é geralmente o texto que mais deixa de ser texto. Porém não é a sua disposição em versos e estrofes, em ritmo e rima que faz o poema ser poesia. Explico.

Uma poesia ultrapassa a forma de poema. A poesia é poesia pela forma como o autor encadeou os sons de modo a dar às palavras novos significados, de forma a dizer coisas de maneira única ou até então não pensada. O poeta, consegue, na forma, no ritmo e na rima - mesmos as mais dissonantes possíveis - atingir o impossível, sair do lugar comum e propor algo completamente inusitado. E para fazer isto o poeta se especializa em utilizar a metáfora.

Eis aí o segredo: a metáfora. O que faz o poema ser poesia é o domínio da metáfora por parte do poeta - ou seria o contrário: o domínio do poeta pela metáfora... Poesia não é para qualquer um! Poesia são para os de alma livre que se deixa embeber pelas metáforas, ora simples, ora complexas e mágicas. Sim as metáforas dão alma aos poemas e os transformam em poesia. As metáforas podem ir além e ultrapassar a forma do poema e transformar uma narrativa, um conto, uma crônica em poesia.

Comece a observar como os poetas utilizam-se das metáforas e verás quanta poesia está presente nos textos que escrevemos. Mas não se assuste! Você encontrará inúmeros textos dispostos em formato de poemas que não são poesias... são apenas textos.

A poesia é o inusitado do poema. Se preferir utilizemos conceito de poesia do grande poeta Manoel de Barros: "Poesia é voar fora da asa".

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