Numa bela manhã de sábado, deitado
sozinho no quarto, Pablo foi acordado pelo grito aflito da esposa, que ecoou
pela casa, cheio de terror:
“Um rato!”.
Ao ouvir a palavra rato, o rapaz
instintivamente encolheu-se na cama e arregalou os olhos. “Não, não pode ser,
estou sonhando”, pensou. Às vezes isso acontecia. Bem de manhã, o sol brilhando
no céu, ele sonhava, meio acordado, meio dormindo, e eram sonhos tão reais que
pareciam de verdade.
“Um rato? Não é possível”, pensou
Pablo, balançando a cabeça pesada de sono.
Mas a filha de sete anos gritou
também, e esse grito, ele tinha certeza, era de verdade:
“Papai, tem um rato aqui na sala!
Vem depressa!”.
“Vem o quê? O que está
acontecendo?”, perguntou Pablo, esfregando os olhos inchados, já sem a menor
esperança de acordar e descobrir que aquilo não era real.
Mais um grito, dessa vez do filho
de três anos: “Um ratinho, papai, vem rápido!”.
Foi só aí que, na cabeça aturdida
de Pablo, a ficha caiu. Tirando o menino, que ainda usava fraldas para dormir e
mamava no peito, só tinha ele de homem na casa. E não se sabe por qual trama diabólica
do destino, desde o surgimento dos primeiros hominídeos, na África, há mais de
cinco milhões de anos, cabe sempre ao homem da casa exterminar criaturas horripilantes
que vez ou outra adentram o recinto doméstico: pombos, morcegos, pererecas,
baratas, lagartixas, cobras e ratos.
Com Pablo isso nunca tinha
acontecido, e ele pensava que nunca ia acontecer. Na verdade, nem pensava no
assunto. A casa era toda vedada, não havia lotes vagos nas redondezas, nada que
pudesse atrair as terríveis criaturas das trevas.
Mas o destino lhe reservara
aquilo. Havia um rato na sala. E além de bicho asqueroso, aquele roedor era a
primeira oportunidade que Pablo teria de mostrar ao filho que naquela casa
havia um macho de verdade: era o momento de dar o exemplo que todo menino homem
precisa receber de seu progenitor nos primeiros anos de vida: o da macheza, da
força e coragem do homem da casa, do chefe da família.
Infelizmente não era hora ainda
de explicar aos meninos que o novo Código Civil não reconhecia mais essa figura
do “chefe de família”, que agora era tudo compartilhado entre marido e mulher,
e que no assunto “bichos horripilantes”, a mulher poderia muito bem fazer o papel
de exterminadora sanguinária, de “Conan, o bárbaro”, sem comprometer a
masculinidade do marido. Não, não dava para explicar. Ninguém ali ia entender.
Qualquer coisa que ele dissesse teria como resposta uma única ordem, tão clara quanto
o sol naquela manhã de primavera: “Cumpra a sua obrigação de homem e mate esse
rato AGORA!”. No olhar da esposa ele leria: “Seja homem, pelo amor de Deus, seja
homem...”. No da filha, questionador e sarcástico, uma profecia agourenta: “Ele
não vai conseguir”. No do filho, talvez, uma esperança: “Meu pai é macho”.
Que pressão, meu Deus!
Mas só de pensar naquela criatura
mexendo as perninhas e orelhinhas, balançando o rabinho, aos pulos, correndo, se
enfiando embaixo das coisas... – Só de pensar nisso Pablo se arrepiava todo e
se encolhia mais na cama, de medo, pânico, desespero. Um suor frio começou a
escorrer pela sua testa, suas mãos tremiam embaixo do lençol, seus pés gelavam.
O que fazer?
Não teve outra saída. Levantou-se
da cama e foi até a sala. A mulher e as crianças, encolhidas num canto,
morrendo de medo, apontaram para um pufe de couro marrom que ficava perto da
porta da cozinha. O rato tinha vindo da despensa e estava ali, escondido.
Pablo ficou parado olhando o
pufe.
Se uma câmera tivesse registrado
a cena, você veria agora um homem de cerca de trinta anos, terrivelmente
assustado, examinando de longe o que poderia ser os destroços de um objeto
voador não identificado, pronto para correr feito louco quando o primeiro
tentáculo de um ET surgisse de dentro da misteriosa massa marrom.
Pablo sabia que não podia ficar
ali parado por muito tempo. Os olhares estavam todos sobre ele, cheios de
expectativa.
Ele então se moveu, lentamente. A
mulher apontou para uma vassoura piaçava encostada na parede. O gesto dizia: “Vá
lá, pegue a vassoura e faça o serviço”. Então ele foi. Pegou a vassoura com
cuidado e, fora de si, como um autômato, aproximou-se do pufe, cutucando-o de
leve com o cabo, que tremia em sua mão.
Gritos. O bichinho saiu correndo
desesperado, indo na direção dos quartos. A filha gritou: “Meu quarto NÃO!”, e
olhou para o pai, como se dissesse: “Faça alguma coisa, pelo amor de Deus!”.
E ele fez.
Se uma câmera fosse capaz de
captar imagens do além e estivesse ligada no exato momento em que o ratinho
pulou para fora do pufe e disparou pela sala, certamente veríamos o espírito endemoniado
de uma pombajira se apossar do corpo daquele pai, com uma ordem taxativa dos
orixás: Mate!
Na mesma hora Pablo começou a dar
com a vassoura no chão, vinte vezes por segundo, seu corpo tremendo, indo pra
frente e pra trás, como se possuído por um Exú vindo das regiões mais profundas
do inferno. E o rato seguia seu caminho, incólume, como se possuído também por
um espírito maligno, daqueles que dão vida eterna ao corpo hospedeiro. (A cada dez
vassouradas que Pablo desferia sem dó sobre o chão, pelo menos uma ou duas o
rato recebia; mas mesmo assim o bichinho continuava vivo e seguia seu trajeto,
sem deixar uma gota de sangue no piso branco da sala).
Mas Pablo conseguiu encantoar o bicho
no corredor, quase na entrada do quarto da filha, e desferiu sobre ele as
vassouradas mais certeiras e desesperadas daquela terrível campanha, tão fortes
que voou piaçava para todos os lados e a vassoura partiu-se em três pedaços.
Acabou. O ratinho jazia sem vida
no chão: minúsculo, menor que um dedo, esborrachado, a boquinha aberta, todo
sujo de sangue, coitadinho.
Pablo saiu do transe e percebeu, com
orgulho, que aquela mini-carnificina tinha sido obra sua. A mulher e as
crianças se aproximaram, ressabiadas, e ao verem o bicho morto, suspiraram
satisfeitas.
Pablo tinha cumprido sua
obrigação. O núcleo familiar estava salvo. Ele ainda era o homem da casa.
Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1