sábado, 28 de abril de 2012


O Claro, o escuro



O claro e o escuro

A penumbra ofuscada à luz da lua

E nossos olhos não define bem o que vê

Mas o coração teima em dar pistas



O claro e o escuro
A intensidade de luz, deste sol que nos impõe
Seus raios e dos quais não podemos fugir
Mas o coração insiste em palpitar



O claro e o escuro

Lua e sol não se encontram no céu

embora tudo seja apenas mera aparência

Mas o coração insiste em declarar amor à luz da lua

Luz aparente, espelhada do sol



O claro e o escuro
Faces de uma mesma realidade
Que os olhos não enxergam de modo claro
Mas o coração, por razões desconhecidas
pela própria razão, ainda nos ensinam.


O claro e o escuro, a presença e a ausência

Da luz de uma única origem,

que enganam nossos sentidos,

mas não enganam nosso coração.



Geraldo Fonte Boa, Cadeira nº 14 - Patrono: João Dornas Filho

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Cores e Dores *


                                          
                                  Terezinha Pereira


A tela. Branca. Pura. Imaculada.
Instilar letra por letra na tela. Macular........
Dizer de quê por cima do branco?
Branco de paz, pureza, perfeição, limpeza,
simplicidade,  inocência, singeleza.

Vem o cinza quase negro. Cor da escrita.
Do lápis. Da fonte de letras.
Cinza é meio termo. Nem branco nem preto.
Mancha o branco da tela.
De branco. De preto.

O cinza revela. Desvela. Delata. Denuncia.
Declara. Divulga. Faz conhecer.
Registra. Faz história.
Narra histórias. Conta.
Romanceia. Finge. Simula.

O preto. Ausência de luz.
Gato quando preto. Azar. Obscuridade.
Junção de todas as cores.
Ausência de luz. De cores.
Luz. Não luz. Não cor. Luto.

Em agosto.
O verde das matas,
o verde dos matos fazem-se cinza.
Poeira pura. Puro pó. Fuligem.
O ar não tem cor.

O ar. Leva cor?
Poeira. Fumaça. 
Estrume de indústria. Estrume de queimada.
Cinzeiros. Grafite. Cor de pedra de lápis. Cinzento.
Cinzado. Acinzentado.  Acinzado.

O sol vem de amarelo. Laranja. Vermelho.
Energia. Força. Potência. Luz amarela. Douro.
Ouro fogo. Ouro cobiça. Ouro do triunfo. Brilho.
Amarelo ovo. Girassol. Ipê de agosto,
de meu gosto. Dá gosto, em agosto.

Cores. Cores puras. Vermelho amarelo azul.
Amarelo com azul fica verde.
Vermelho com amarelo, laranja.
Azul com vermelho violeta.
Azul. Fria cor. Do mar e do céu. Marazul.
 
Céu tintado de vermelho em agosto.
E. Na tela que esteve branca,
eu disse de cores.
De dores.
De amores.

* ou: Vestígios na tela branca, versão 2

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A mais pura riqueza

Cotidiano é o que eu tenho.

É o que eu vivo.

É aquela dorzinha fria do espírito na segunda-feira de manhã, mas que logo vai embora.

O cheiro de café passado na hora.

A despedida dos filhos na porta da escola.

O trabalho.

Ser professor é o meu sonho sempre renovado.

Foi o que eu escolhi.

É o que eu gosto.

E os amigos.

E a família.

Meu espírito se ilumina todos os dias com o amor que eu sinto pela minha família.

E pelos livros.

Ler me dá asas.

Asas que crescem a cada nova leitura.

Com os livros eu me elevo.

E a liberdade que eu sinto é imensa.

Ela também cresce com os livros...

Alimento do espírito.

Porque o que nos aprisiona são as coisas, a opinião dos outros, a necessidade de ter, possuir:

Poder, dinheiro, fama, reconhecimento.

Mas isso tudo acaba.

Rápido.

O espírito não.

Liberdade.

A fantasia sem limite.

Sonho.

Vida interior.

Deus.

Um lugar secreto onde eu me sinto rico, forte, no meu silêncio, sem depender de aplausos, sem me importar com a indiferença e a ingratidão dos outros.

Livre de tudo que me escraviza.

Livre do medo.

A mais pura riqueza.

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Crônica dos 37 (ou narcisista)


                                                   José Roberto Pereira
“37 anos de felicidade e raríssimas lágrimas”

Fiz, dia dezessete, exatos trinta e sete anos de idade. Para muitos, pode não ser uma data expressiva a ponto de merecer uma crônica (talvez não mereça mesmo, pois as datas de aniversário mais comemoradas são as de quinze, trinta, quarenta e cinquenta anos). Eu, porém, me senti tentado a escrever sobre os trinta e sete porque foi a chegada dessa idade que mais me causou  reflexões sobre o antes e o após, como se fosse uma linha tênue imaginária, uma fase intermediária, o meio de uma estrada com a outra  metade ainda a ser  percorrida.

Trinta e sete. Se somarmos os números três e sete, teremos dez. E, se somarmos o um e o zero, obviamente, teremos um. Um é sempre um ponto de partida para se chegar a algum lugar ou para realizar algo, como um sonho, um projeto em curto, médio ou longo prazo, uma conquista ou um desejo. Um pode ser o ponto de partida para uma trégua ou um início, para um ponto final ou um recomeço. Um será sempre o primeiro, do ponto de vista de quem quer se deslocar ou se decidir sobre algo que almeja ou de que necessita.
Eu, nos meus trinta e sete anos, primeiramente olho meu corpo e vejo de que maneira ele chegou a mais de três décadas. Numa análise física feita apenas pela retina dos olhos, ainda vivos e atentos, percebo o quanto fui sensato por não ter submetido meu corpo às drogas e ao álcool, por sempre ter lhe dado repouso quando se mostrou cansado, por ter aceitado sem resistência suas imperfeições, por ter sido rigoroso com higiene, por ter me alimentado com qualidade mesmo quando os alimentos eram escassos, por  ter me aquecido quando me arrepiava de frio, por ter tirado a camisa e mostrado o peito nu para abrandar o calor, por ter cuidado zelosamente de feridas, por não ter sido contido em mimos e carinhos, por ter – sempre que possível – usado um cremezinho, um protetor solar e algumas gotinhas suaves de perfume.
Já do ponto de vista interno, este corpitcho de um metro e sessenta e sete centímetros de altura me mandou raríssimos sinais de enfermidade, talvez pelo zelo que tenho com ele e pelo tempo que me dedico a seus caprichos. Até em relação aos cantinhos mais sigilosos que ficam bem lá dentro, no fundinho do coração sem fim, não me distraí, me entreguei a quase todos os amores que me foram oferecidos, dos mais suaves aos mais geniosos (confesso, com uma leve reflexão, que sempre devotaram mais amores a mim do que eu devotei aos outros, às vezes penso que poderia ter amado mais). Também para a alma livre e leve que habita esse fundinho do coração sem fim nunca faltaram orações.
 Minhas conquistas até os trinta e sete não poderiam ser enumeradas aqui. Foram muitas. Tantas que seria desastroso citar algumas, assim como seria desastroso também dizer que já estou realizado. Sinto-me em pleno vendaval, que vai ligeiro de uma ponta a outra da margem da estrada vendo, levando, absorvendo, agregando, descobrindo e construindo momentos novos. Sou ainda curioso com o mundo e apaixonado pela vida e por viver. Tento, como o vendaval, deixar registrada minha passagem, modificando, na medida do possível, o que está à minha volta (com a devida atenção de não destruir, e sim de reconstruir).
Com a soma dos trinta e sete, se chega ao número um, seguindo o raciocínio apresentado no início do texto. O que pensavam meus pais de mim, quando eu, com um ano de idade, era apenas uma promessa de um homem com um futuro incerto? Com um ano de idade, eu ainda me alimentava no seio da minha mãe. Eu dependia de todos que me cercavam para sobreviver às doenças da fase infantil. Eu precisava de carinhos para me tornar mais humano, de orientações para conseguir viver numa sociedade, de proteção contra as adversidades do tempo e da vida, de castigos e afagos para entender erros e acertos, de alegrias e tristezas para entender sentimentos incompreensíveis, de orações e instruções para entender o bem e o mal, do impulso da coragem e do recuo diante do medo. Com um ano, muito era plantado em mim, até o livre-arbítrio. Hoje, dia dezessete, com exatos trinta e sete, eu retorno ao um, numa fase imaginária no meio de uma estrada comprida. E, se começo a caminhar da metade para o final, tenho então outra oportunidade de plantar e replantar, de jogar ao longo desta estrada muitas sementes para que, à medida que eu vá caminhando, elas estejam crescidas, com frutos para serem colhidos.
Que eu caminhe por mais trinta e sete e, se me cuidar bem, posso até caminhar por mais alguns anos... Entre tantas sementes que quero semear para ir colhendo após os trinta e sete, certamente  estarão as de muitas flores raras e belíssimas, porque a vida não pode ser vivida tão displicentemente a ponto de não  exigir nada e nem pode ser tão séria a ponto de não nos permitir sorrir  ou nos emocionar ao ver ou receber flores. 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Testamento de Judas


                                                                       Terezinha Pereira


            As lembranças não são muitas. Você sabe. O tempo costuma levar consigo fatos e boatos. A festa da vingança contra Judas era realizada aos Sábados de Aleluia. Havia de ser no dia seguinte ao da morte de Jesus. Ainda bem que muita coisa fica escrita.
            Judas Iscariotes. Ele havia traído Jesus em troco de 30 moedas. De prata.  E ele  havia sido um dos 12 seguidores do Mestre. Conhecia-O bem. Mesmo assim, apontara-O a Seus algozes. “Aquele é o homem que vocês procuram.” Nos evangelhos, Mateus (10:2-4), Marcos (3:16-19) e Lucas (6:13-16) atestam a traição.
            Mateus também fala do remorso, do destino das 30 moedas e do suicídio de Judas. O que restou a ele, como delator. “Judas ficou cheio de remorsos...: trouxe de novo as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: 'Pequei ao entregar à morte um inocente.' Eles replicaram: 'Que nos interessa isso? O problema é teu.' Lançando então por terra as moedas de prata, ele retirou-se e foi enforcar-se." ( 27, 3-5)
            O homem não quis ser perdoado pelo Mestre........ Não lhe deu o tempo. Se ele mesmo se dispôs a receber o castigo... Para os cristãos, em grande parte deste vasto mundo, em terras de origem latina, seguem-se mais de 2.000 anos de vingança. Malhar, enforcar, queimar o Judas.
            Minhas poucas lembranças da queima de Judas estão na infância. Da época que ele ainda não ganhava a máscara do político da hora. No Sábado de Aleluia, a mãe servia o café da manhã e já preparava o almoço, pois em breve não podia mais conter as crianças. Pelas 10, saíam com um boneco de pano, tamanho de um homem, na carroceria de uma caminhonete (?). O Judas.  Meninada e gente grande seguiam atrás. Aleluia!  O cortejo percorria as ruas principais da cidade até chegar à Praça da Independência, o palco de todos os anos. Acho que havia banda de música e muito foguete. Quando eu chegava à Praça da Independência, esta já estava lotada. Em pleno meio do dia, fazia um calorão danado. Eu torcia para que o vendedor de picolé passasse logo. Nesses dias, cada menino da casa ganhava uns trocados para o picolé. Os que haviam vendido velas para a procissão da Sexta-Feira da Paixão podiam comprar dois.  
            Ao meio dia em ponto começava a leitura do testamento do Judas. Momento solene. As pessoas, a banda, os foguetes, tudo em silêncio. Um orador, será que ficava em cima da mesma caminhonete do Judas?... O orador mostrava uma papelada. Todos aplaudiam. E ele começava a leitura. A curiosidade tomava conta do povão.
            Quais seriam os herdeiros do Judas desta vez? No ano passado fulano herdou o chapéu, sicrano as cuecas.  Quem seriam os “cristos” do Sábado de Aleluia?  Às vezes o testamento era escrito em forma de versos. O conteúdo era sempre divertido. Picante. Cheio de fofocas a respeito de pessoas da cidade. Naquele época, os políticos já eram lembrados. Os herdeiros, muitos levavam na brincadeira. Outros não. Contavam que alguns ficavam emburrados a semana inteira.
            Mas, a meninada permanecia em alegria o tempo todo, à espera do enforcamento, quando o boneco seria preso por uma corda pelo pescoço. No galho de uma árvore, num poste? No momento em que o enforcado balançava as pernas lá de cima, sob aplausos, ateavam-lhe fogo. As bombas que faziam parte de seu enchimento explodiam e voavam estopa, papel, serragem- sei lá de que era mesmo feitos as vísceras e o interior de seu corpo- para todo lado. Pedaços de membros, chapéu, roupas... Alguns até pegavam resíduos como relíquias.
            Findo os estalos, lembrávamos que estávamos de barriga vazia. Saíamos em bando. Pais, mães, filhos. Falávamos do testamento. Relembrando os herdeiros, imaginando que fulano iria ficar amuado. Dizendo que naquele ano haviam caprichado mais no discurso e também na quantidade e força das bombas. Durante o almoço daquele dia e semana inteira o assunto não era outro.
            Sabe. Há alguns dias, folheei uma edição de 05/04/1947  do “Vossa Senhoria “, o menor jornal do mundo, que foi editado em Pará de Minas no período de 1946 a 1948. Foi o que me fez recordar esses fatos. Na página 11 tem um “Testamento de Judas”. Como não há nenhuma referência, fiquei especulando. Teria sido esse o testamento lido na queima do Judas do ano de 1947?      
            Como eu nem havia ainda nascido, vou continuar na especulação. Ou você saberia me dizer se foi? Como lhe disse, as lembranças não são muitas.

Vossa Senhoria, p. 11. 05/04/1947

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A alma do livro


Na biblioteca escura, de corredores sujos e estreitos, livros nunca lidos, de autores desconhecidos, lançados e autografados em coquetéis com canapés, castanhas e vinho para os amigos – que só por amizade os compraram, doando-os depois para ganhar espaço nas gavetas e armários de suas casas apertadas –, enchem com suas lombadas de cores opacas as velhas estantes da cidade cinza, onde a ignorância e o orgulho reinam quase absolutos. Na biblioteca escura a poeira encobre vidas esquecidas, almas adormecidas que esperam o despertar, o toque de uma mão que as liberte do sono, o folhear que nas páginas impressas em tinta e sangue abra os portais de seus mundos distantes e luminosos. O folhear libertador, o lento passar dos olhos sobre as letras e frases, mundos que no escuro pulsam de alegria e dor e que por magia renascem com a leitura e aos poucos recobram a força da vida que os criou. Terra, cimento e mármore não calam a voz do escritor que deixou sua alma ali na biblioteca escura, sem ser lida, coberta de poeira, esperando, sua voz à espera do olhar que a liberte, e ele vem, o olhar, um dia ele vem, e o passado renasce, recria-se naquele que olha e sente, e a vida se renova com a voz do que passou e do que é eterno, e as almas se encontram no leitor que apreende e recebe o texto vida que nunca morre. Mesmo esquecido e não lido, enfiado na estante empoeirada da biblioteca escura do reino da estupidez, o livro do autor nunca lido está vivo, à espera, a memória não se apaga, a indignação, a dor, a alegria, a alma lavada sofrida vivida não se apagam jamais do texto – estão lá, esquecidas, vivas, esperando...

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

Um rato!


                                                                                                
Numa bela manhã de sábado, deitado sozinho no quarto, Pablo foi acordado pelo grito aflito da esposa, que ecoou pela casa, cheio de terror:

“Um rato!”.

Ao ouvir a palavra rato, o rapaz instintivamente encolheu-se na cama e arregalou os olhos. “Não, não pode ser, estou sonhando”, pensou. Às vezes isso acontecia. Bem de manhã, o sol brilhando no céu, ele sonhava, meio acordado, meio dormindo, e eram sonhos tão reais que pareciam de verdade.

“Um rato? Não é possível”, pensou Pablo, balançando a cabeça pesada de sono.

Mas a filha de sete anos gritou também, e esse grito, ele tinha certeza, era de verdade:

“Papai, tem um rato aqui na sala! Vem depressa!”.

“Vem o quê? O que está acontecendo?”, perguntou Pablo, esfregando os olhos inchados, já sem a menor esperança de acordar e descobrir que aquilo não era real.

Mais um grito, dessa vez do filho de três anos: “Um ratinho, papai, vem rápido!”.

Foi só aí que, na cabeça aturdida de Pablo, a ficha caiu. Tirando o menino, que ainda usava fraldas para dormir e mamava no peito, só tinha ele de homem na casa. E não se sabe por qual trama diabólica do destino, desde o surgimento dos primeiros hominídeos, na África, há mais de cinco milhões de anos, cabe sempre ao homem da casa exterminar criaturas horripilantes que vez ou outra adentram o recinto doméstico: pombos, morcegos, pererecas, baratas, lagartixas, cobras e ratos.

Com Pablo isso nunca tinha acontecido, e ele pensava que nunca ia acontecer. Na verdade, nem pensava no assunto. A casa era toda vedada, não havia lotes vagos nas redondezas, nada que pudesse atrair as terríveis criaturas das trevas.

Mas o destino lhe reservara aquilo. Havia um rato na sala. E além de bicho asqueroso, aquele roedor era a primeira oportunidade que Pablo teria de mostrar ao filho que naquela casa havia um macho de verdade: era o momento de dar o exemplo que todo menino homem precisa receber de seu progenitor nos primeiros anos de vida: o da macheza, da força e coragem do homem da casa, do chefe da família.

Infelizmente não era hora ainda de explicar aos meninos que o novo Código Civil não reconhecia mais essa figura do “chefe de família”, que agora era tudo compartilhado entre marido e mulher, e que no assunto “bichos horripilantes”, a mulher poderia muito bem fazer o papel de exterminadora sanguinária, de “Conan, o bárbaro”, sem comprometer a masculinidade do marido. Não, não dava para explicar. Ninguém ali ia entender. Qualquer coisa que ele dissesse teria como resposta uma única ordem, tão clara quanto o sol naquela manhã de primavera: “Cumpra a sua obrigação de homem e mate esse rato AGORA!”. No olhar da esposa ele leria: “Seja homem, pelo amor de Deus, seja homem...”. No da filha, questionador e sarcástico, uma profecia agourenta: “Ele não vai conseguir”. No do filho, talvez, uma esperança: “Meu pai é macho”.

Que pressão, meu Deus!

Mas só de pensar naquela criatura mexendo as perninhas e orelhinhas, balançando o rabinho, aos pulos, correndo, se enfiando embaixo das coisas... – Só de pensar nisso Pablo se arrepiava todo e se encolhia mais na cama, de medo, pânico, desespero. Um suor frio começou a escorrer pela sua testa, suas mãos tremiam embaixo do lençol, seus pés gelavam. O que fazer?

Não teve outra saída. Levantou-se da cama e foi até a sala. A mulher e as crianças, encolhidas num canto, morrendo de medo, apontaram para um pufe de couro marrom que ficava perto da porta da cozinha. O rato tinha vindo da despensa e estava ali, escondido.

Pablo ficou parado olhando o pufe.

Se uma câmera tivesse registrado a cena, você veria agora um homem de cerca de trinta anos, terrivelmente assustado, examinando de longe o que poderia ser os destroços de um objeto voador não identificado, pronto para correr feito louco quando o primeiro tentáculo de um ET surgisse de dentro da misteriosa massa marrom.

Pablo sabia que não podia ficar ali parado por muito tempo. Os olhares estavam todos sobre ele, cheios de expectativa.

Ele então se moveu, lentamente. A mulher apontou para uma vassoura piaçava encostada na parede. O gesto dizia: “Vá lá, pegue a vassoura e faça o serviço”. Então ele foi. Pegou a vassoura com cuidado e, fora de si, como um autômato, aproximou-se do pufe, cutucando-o de leve com o cabo, que tremia em sua mão.

Gritos. O bichinho saiu correndo desesperado, indo na direção dos quartos. A filha gritou: “Meu quarto NÃO!”, e olhou para o pai, como se dissesse: “Faça alguma coisa, pelo amor de Deus!”.

E ele fez.

Se uma câmera fosse capaz de captar imagens do além e estivesse ligada no exato momento em que o ratinho pulou para fora do pufe e disparou pela sala, certamente veríamos o espírito endemoniado de uma pombajira se apossar do corpo daquele pai, com uma ordem taxativa dos orixás: Mate!
Na mesma hora Pablo começou a dar com a vassoura no chão, vinte vezes por segundo, seu corpo tremendo, indo pra frente e pra trás, como se possuído por um Exú vindo das regiões mais profundas do inferno. E o rato seguia seu caminho, incólume, como se possuído também por um espírito maligno, daqueles que dão vida eterna ao corpo hospedeiro. (A cada dez vassouradas que Pablo desferia sem dó sobre o chão, pelo menos uma ou duas o rato recebia; mas mesmo assim o bichinho continuava vivo e seguia seu trajeto, sem deixar uma gota de sangue no piso branco da sala).

Mas Pablo conseguiu encantoar o bicho no corredor, quase na entrada do quarto da filha, e desferiu sobre ele as vassouradas mais certeiras e desesperadas daquela terrível campanha, tão fortes que voou piaçava para todos os lados e a vassoura partiu-se em três pedaços.

Acabou. O ratinho jazia sem vida no chão: minúsculo, menor que um dedo, esborrachado, a boquinha aberta, todo sujo de sangue, coitadinho.

Pablo saiu do transe e percebeu, com orgulho, que aquela mini-carnificina tinha sido obra sua. A mulher e as crianças se aproximaram, ressabiadas, e ao verem o bicho morto, suspiraram satisfeitas.

Pablo tinha cumprido sua obrigação. O núcleo familiar estava salvo. Ele ainda era o homem da casa.

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

quarta-feira, 4 de abril de 2012

CIÚME


                                                                                            - Terezinha Pereira- 


Nasceu com olhos perspicazes. Conheceu os diversos tons de verde das matas, os azuis da natureza, o transparente da água e do vidro, as cores das flores, das aves, das borboletas. Viu bichos de casa, da fazenda.  Brincou com brinquedos de formas várias. Conheceu o mar de algum lugar, rios, cachoeiras. Viu formas, rostos, sorrisos, caras amuadas, olhares de desdém.
Os doutores não souberam explicar - ou não quiseram- se razão alguma havia para ele se cegar tão jovem. Aos cinco anos de idade, foi quando a sombra lhe tomou o claro.  Sem mais nem menos. De repente, as formas foram se misturando, as cores se embaralhando às suas vistas. Em poucos dias, uma tela negra predominou em toda a porção de espaço que seus olhos podiam alcançar.
Cresceu sem nada mais ver com o olhar. Aprendeu a sentir com desvelo: o frio, o calor, o carinho, o afago, a dor. Provou do doce, do amargo, do azedo, do picante, do salgado. Tornou-se sabedor de cheiros de flores, comidas, perfumes, de gentes e de bichos. Intensamente, permitiu-se ternura, afeto, surpresa, espanto, admiração, alegria, tristeza, perplexidade, solidão, dor, mágoa, frustração, pessimismo, raiva, sensação de superioridade ou de inferioridade. Aprendeu a diferençar o timbre de sons. Suaves, agudos, graves, harmônicos  ou não.
Adolescente, entre todas as vozes que já ouvira, encontrou uma que lhe parecia mais intensa, mais suave, mais melodiosa. Ah, e o corpo! De todos os que já enlaçara, foi o que lhe pareceu mais delicado. De odor mais ameno e puro. Pelos olhos dos outros, soube que a moça era bela, linda. Rosto, olhos e coração. Conheceu o céu.
Tanto lhe disseram da moça com quem passou a dividir os melhores momentos de sua vida, que teve o desejo de poder contemplá-la. O imaginar não lhe bastava. Indagou, estudou, pesquisou- coisa que as modernidades do mundo de hoje permitem. Acabou sabendo de um doutor em lugar distante. Doutor que poderia lhe dar o gosto de alcançar com a vista a beleza de sua amada.
            Da moça recebeu todo apoio e tudo mais que lhe foi preciso para ir atrás do tal doutor. Afinal, ele queria de volta o sentido perdido na meninice. Queria tanto! Passados alguns dias, depois dos preparativos, o doutor conseguiu-lhe cumprir o prometido. E ele pôde de novo ver o mundo.
De súbito, assustou-se com seu reflexo no espelho. Não se lembrava mais. Não achou graça.  Ao olhar a moça, admirou-se com sua formosura. Num instante, ele deu de cara com ....... O ciúme.  E o que é o ciúme, minha gente? Sentimento doloroso. Exigência de amor, que inquieta.  Desejo de posse da pessoa amada. -Acaso, gente tem dono?- Ardor que faz sofrer e gemer de dor. Sentimento que atormenta. E mata.
A partir de então, viveu o inferno. 



segunda-feira, 2 de abril de 2012


GRAVIDADE

Márcio Simeone
(Cadeira n.º 8)

Vi você saindo de sua órbita, planeta aventureiro. Na verdade estendia sua trajetória, talvez para mover-se aos confins do universo – caso fosse possível contemplar os seus limites. Os astrofísicos explicariam pela atração gravitacional irresistível de uma estrela brilhante, meio distante, mas sabe lá que outras misteriosas forças regem essa trajetória, que se alarga até essa estrela incomum, para retornar à órbita de outra estrela, tão mais conhecida. Aqui, onde estamos, tudo é reconhecível, tudo segue seu destino cósmico, rodeando a estrela-mãe que, no entanto, não emite as frequências que mais lhe agradariam. Pena que em torno dela haja tantos planetas inóspitos e desabitados, satélites hostis (ou incompreendidos) e outros astros que, embora próximos, não lhe parecem atraentes ou seguros. Há cometas, visitantes esporádicos que nos alegram com sua passagem sempre luminosa e espetacular. Haveria muito a explorar, mesmo neste pequeno mundo aparente. Compreende-se, no entanto, a sua angústia de dividir espaços com alguns planetas quase vazios e sem cores, de não poder enxergar de uma certa distância, porque você está dentro e tudo está em suas programadas órbitas. Agora você mudou seu movimento, indo mais além e voltando - uma volta de penas, dividida, que não faz par com as alegrias e expectativas luminosas de uma ida feliz, vigiada por inumeráveis constelações distantes, habitantes polimorfas do negrume do cosmos. Há riscos de colisão com os asteróides, de ter pela frente a atração mortal de um buraco negro, mas nada disso importa, diante das forças livres do universo. Lá em algum lugar, a visão de uma estrela cadente lhe inspira desejos, como a lembrar do acaso, da imprevisibilidade e da finitude. E você segue, em suas revoluções. Um pouco mais além, de novo nossas órbitas se cruzarão, como agora acontece em intervalos maiores. A energia trocada neste espaço comum alterará nossas condições climáticas. Essa influência recíproca ficará guardada numa memória universal, mas cada um seguirá por aí, orbitando e sonhando. Saudade...