terça-feira, 29 de outubro de 2019

Hernani Almeida
Cadeira n.º 16 



Pequeno doce homem

Palavras de alento
Olhos atentos
com o velho caminhas.
                         
(2005)

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Andante

Geraldo Phonteboa
Cadeira n.º 14


Hoje eu acordei caminhando
Sobre meus pensamentos...
Eram ideias vagas...
Inacabadas...
Imperfeitas....
Que não sabiam de mim,
Nem que davam conta do que sou...
Caminhei por labirintos que nunca havia conhecido:
Há mais mistérios em mim que fora de mim...
E eu que penso conhecer o mundo!!!
Não sei quanto tempo caminhei.
Mas sempre havia luz!
E o calor fez transpirar-me para a superfície...
Para a epiderme interior
Para a superfície da consciência....
Dizem que estou ficando louco.
Eu ainda não me sei.
Enquanto isso continuo neste caminho.
Alguém aí pode dizer onde estou agora?

sábado, 19 de outubro de 2019

À MÁQUINA

Márcio Simeone
Cadeira n.º 8


Olhou para a máquina de escrever, a única sobrevivente naquele espaço de uma época especial, o símbolo de uma era em que ainda sonhava com os velhos ideais. A vida se escrevia ali, uma vida mecânica, feita de espaços, tabulações, dedos sujos de tinta e com calos na ponta, duzentos toques por minuto. Movida a energia humana. Sim, este era o último elo. Nada mais ali remetia àquela faina datilográfica, àquele frenesi da conclusão dos textos, àquele silêncio profundo que se seguia à retirada da última folha do carro, missão cumprida, cigarro aceso com mérito, o alívio depois de uma guerra travada com as teclas, ao martelar intenso que já lhe doía os ouvidos. Lembrava-se de que ela nunca reclamou quando derramava café no teclado ou descontava impaciência, maltratando as teclas com força. E que ela também não se incomodou, nem por um momento, com seus vícios de linguagem (nem quaisquer outros). As palavras eram compostas cuidadosamente, pensadas quase sem erros, apareciam magicamente impressas e pareciam ganhar relevo e saltar para cima da máquina. Muito tempo a datilografar provocava miragens, uma alucinação das palavras viventes que, num movimento incessante, desciam da cabeça, passavam pelos dedos, pulavam alegres para o papel e de lá espirravam para o ambiente (tinham cheiro de óleo, é verdade). Travava um diálogo com a máquina, numas vezes terno e doce, noutras áspero, cortante, a descontar a raiva no papel, arrancado de um puxão, amassado e deitado à lixeira. Por ela tirava de si todo amor e todo ódio. Fazia valer. Noites viradas na escrita e lhe doía a cabeça e a letra “a”. Desprezava os “cata-milhos”, não pela incompetência, mas pelo tratamento injusto que dispensavam ao equipamento. Hoje a velha máquina está naquele canto, pronta a funcionar, caso troque a fita ressecada. Ela não tem mistérios, não guarda segredos, corresponde exatamente aos comandos. Não se pode culpá-la de nada. Nunca se cansou, nunca pediu mais nada que não uma fita nova e os carinhos da limpeza e da lubrificação. Não mais se lembra qual foi seu primeiro texto nela produzido. Melhor assim, porque gostava de pensar que era uma carta de amor. Pouco provável que não tenha sido uma insípida e inodora ata de uma infindável reunião, mas a história é só sua e pode contá-la como queira. Importa que tudo o mais tenha sido escrito, dia após dia. E que ela ainda esteja ali, parte, prótese, testemunha, como a dizer que os velhos ideais são os mesmos, ainda vivem e fazem mover as palavras.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

“Farta de paper!”

Conceição Cruz
Cadeira n.º 4



Ele se aproximou, timidamente, da mesa.
A estudante de Direito estendeu-lhe a mão.
_Bom dia! Eu sou Maria. Qual o nome do Senhor? Em que posso ajudá-lo?
O senhor já idoso, magro, roupas zurradas e poídas, tirou  o chapéu para responder ao cumprimento.
_Eu sou o Zé!Trabaio na roça e vim aqui procê arrumá a minha posentadoria.
Falava, enquanto comprimia o chapéu no peito.
Maria olhou a pele dele queimada e maltratada pelo sol, enquanto apertava as suas mãos calejadas.
_Certo, Sr José. Preciso de alguns documentos e de fazer-lhe algumas perguntas, tudo bem?
_Num tenho dicumento não sinhora. Nunca assinaron a minha cartera de trabaio, não. Sô sei iscrivinhá o meu nome prá votá. Eu num sei fazê lei não! Es que faz lei e num sabe prantar nem um pé de cove prá cumê, num sabi tumem quantos bagos tem uma ispiga de mio, nem quantos grãos tem na cova de fijão querem mexer na nossa posentadoria? Esse povo tem muita letra e poco conhecimento da vida, num é memo? Eu, mia fia, num tenho letra não mais  tenho o maió orguio de dizê: na roça, nasci, cresci, vivi, casei, tive fios… mais, o tal dicumento, que iscrivinharon na tar de lei, num tenho não, sinhora. Pode pringuntá prá quarquer um lá na roça: já trabaei p quase todo mundi lá. Já fui no INS: falaron que num tenho direito por farta  de um tar de indício de prova materiar!  Eu trabaiei e trabaio de sor a sor: desde que intendu por gente, ajudava o pai na roça. Cresci, casei e trabaio prá sustentá a famia. Já fiz cerca, apartei vaca, busquei boi no pasto, cortei lenha, cuí ovo, tirei leite, prantei mio, arrois, fijão, batata, cuidei da roça e num tive tempo de ir prá iscola, nem  prá curti doença e dor não, senão as prantas,  as criação, a famia e eu morria… Eu e mia muié tivemo muitos fios… O iscrivão num inscrivinhó nem a minha profissão, nem a da minha muié nas certidão de nascimento dos nosso fios não.
Quem sabe iscrevé e divia iscrivinhá, num iscrivinhó e agora, mia fia, na hora de posentá, quem paga o pato sou eu? Já vivi e trabaiei  muito: vinci a seca, a inundação e já estou desceno o morro! Agora, num tó dano conta mais não, sá! Por isso vim aqui mode ocê mim ajudá.

A estudante de direito, a ouvir a estória de vida, olhava o não dito, mas escrito, naquelas rugas que acrescentavam mais anos àquele rosto, os calos montanhosos daquelas mãos, a boca quase toda desdentada, a pele fustigada anos a fio pelo sol… Ela não tinha dúvida de que, em busca do merecido descanso, cansado, sem estudos,  quase no fim da vida, começaria ali, na busca da aposentadoria rural, a mais extensa via crucis do Senhor José!

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

A alcova

José Roberto Pereira
Cadeira n.º 12



“Primeiro, seus olhos perdidos se encontraram com os meus. O reencontro provocou um sorriso tímido e feliz, o coração disparou, faltou ar e sensatez mútua. Depois seu cheiro impregnou meu entorno, suas mãos chegaram primeiro que a boca, que, entreaberta, foi libertando desejos indecentes. Perdi os comandos e os sentidos, mesmo sentindo todos os sentimentos que são permitidos sentir. Não voltei mais em mim...”

O marido parou a leitura e esmurrou a escrivaninha da biblioteca como se quisesse parti-la ao meio. Respirou fundo, tentando buscar uma calma que jamais conseguiria. Foi à janela e escancarou-a para que o ar do fim de tarde entrasse no ambiente. Voltou à escrivaninha e abriu outra página, tinha a esperança de ler outros escritos que nada tinham a ver com as linhas lidas na página em que abria. Os olhos percorreram as primeiras palavras, mas não teve coragem de pronunciá-las, nem mesmo num sussurro imperceptível.
“Um calor sem fim adentrava a sala de costura. O pensamento ia e vinha junto com o vaivém da agulha furando a seda turca azul com flores lilás. Os cabelos estavam amarrados num coque mal feito, deixando meu pescoço à mostra. Propositalmente à mostra. A monotonia das horas foi quebrada quando senti seus passos por detrás da beger. Parei a costura, depositei a agulha no carretel de linha, tive receio de que a agulha nos ferisse de alguma maneira. Respirei fundo e fiquei alguns segundos intermináveis à espera de que os passos encurtassem a distância. Não tinha a menor noção do espaço entre nós. Eu aguardava algum toque ou ação inconsequente, ali mesmo. Tive a certeza de que minha nunca estava sendo apreciada como uma jóia da realeza. Comecei a respirar ofegantemente e por pouco não me virei e me atirei em seus braços. Torcia as mãos, tentando manter a calma. A ansiedade estava no limite. Ou eu me virava ou ele se atirava em mim através da minha nuca desnuda. Visivelmente desnuda. Mas o que eu queria mesmo era ser...”
Transtornado, o marido empurrou a escrivaninha, chutou a cadeira e caminhou até lareira, tentando se manter calmo. Não reconhecia a dona daqueles relatos. Não poderia ser sua esposa, tinha total certeza disso. A letra era bem parecida, talvez idêntica, mas não era dela. Não, não era! Disso, não tinha dúvida. Andou pelo ambiente com os escritos nas mãos. Por um instante, se arrependeu de ter aberto o diário e ter lido aqueles malditos escritos. Não deveria ter feito aquela violação, agora pagava um preço infernal pelo ato. Outros pensamentos passavam-lhe pela cabeça: se não tivesse folheado aquele diário, esquecido displicentemente sobre a escrivaninha da biblioteca, jamais saberia daquelas desmoralizações. E se aquele diário fosse de uma amiga?... Mas não poderia ser. Estava casado há dois meses e não tiveram visitas. Os olhos ficaram rasos d’água. Pensou que a esposa talvez fosse esquizofrênica ou algo parecido. Mas não... Também não poderia ser. Estava perdido em dúvidas e interrogações. Nem percebeu que a noite tinha chegado e que o fogo da lareira ardia em chamas. Sentou-se ao lado da lareira e abriu outra página.
“Por várias vezes perdi os sentidos....”
Não teve coragem de continuar a leitura. Quando levou a mão à cabeça em sinal de completo desespero, foi surpreendido pela porta da biblioteca, que se abria. Seus olhos se encontraram com os da esposa; os dele estavam coléricos, os dela estavam angelicais. Ele levantou-se olhando fixamente para ela e atirou o diário, aquela semente da discórdia, no fogo da lareira. Febrilmente colérico, andou num tom de marcha fúnebre e marcou o rosto alvo da esposa jovem com os cinco dedos da mão. Ela apoiou-se na porta para não cair. Reergueu-se. Caminhou a passos rápidos e seguros em direção ao escuro e entrou na alcova. Sentia indignação pela violência dos dois atos: pela bofetada e pela leitura de seu diário. Atirou-se no breu da noite e na poltrona da alcova, tentando entender a atitude do marido.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

A busca pelo tesouro

Ailton José Ferreira
Cadeira n.º 7

As escrituras sagradas mencionam em alguns versículos e Jesus Cristo sempre, em algumas de Suas parábolas, nos faz refletir sobre os tesouros da terra e os do Céu, e sempre nos perguntamos: não podemos ter tesouros deste mundo, mas, se o tivermos, não ganharemos o tesouro do céu? Jesus Cristo é muito enfático quando diz que se ajuntarmos os tesouros terrenos, já teremos ganhado e não receberemos o tesouro celeste.
Porém, irmãos em Cristo, tudo o que o nosso Salvador nos ensina é que não podemos permitir que os bens materiais passem por cima das nossas qualidades, que o amor ao próximo, a solidariedade, a humildade sejam superadas então pela ganância, a soberba, o orgulho e a vaidade que nos fazem egoístas, querendo tudo somente para nós e, assim,  ignorando a fome, a injustiça e o sofrimento de nossos irmãos mais carentes. Diz a Bíblia que Zaqueu, chefe dos publicanos e muito rico, se converteu quando sentiu a presença de Jesus em sua casa, que Ele era realmente o filho de Deus e, ao ouvir Suas palavras sentiu um remorso tão profundo pelos bens adquiridos injustamente junto ao povo necessitado que decidiu devolver 50% de sua fortuna e, não satisfeito, devolver o quádruplo do que havia fraudado (Lc 19, 1-10). Até aquele momento Zaqueu predominava em seu interior a ganância, o poder, a vaidade e o egoísmo, mas a curiosidade em ver e conhecer Jesus mais de perto fê-lo se aproximar também da conversão e salvação, quando sentiu que poderia repartir a sua riqueza e devolver quatro vezes mais o que tinha usurpado das pessoas.
Portanto, infelizmente, ainda hoje existem muitos e muitos dos ‘zaqueus’ em nossas comunidades que teimam em deixar de sê-lo e continuar adquirindo mais e mais tesouros sem pensarem que o maior deles estará ou não reservado para nós. Porém, se aqui acumularmos tesouros materiais sem compartilharmos com aqueles que precisam de dignidade, condições humanas e conforto necessários para a sobrevivência, certamente não sobrará espaço em nossos corações para começarmos a juntar os tesouros espirituais em nossas vidas terrenas, que é a partilha da caridade, da solidariedade, da justiça, que nos levará ao encontro do maior Tesouro que é a vida junto a Deus.
Jesus Cristo nos ensina que o bem material é necessário, mas, tudo aquilo que está sobrando em nossas vidas, principalmente os bens materiais, com certeza estará faltando em algum lugar, em alguma comunidade. E, só perceberemos isso, sentindo em nosso próprio coração, quando estivermos em comunhão com Deus, através de nossas orações diárias, de deixarmos que nossos sentimentos de amor, solidariedade, justiça e fraternidade envolvam nossas decisões e ações.
A Glória de Deus é o maior Tesouro que um ser humano pode alcançar, porém, temos que diariamente encurtar o espaço que nos separa dele, conquistando nesta vida as pequenas moedas preciosas que nos levarão à conversão necessária para chegarmos até Ele. Podemos sim, viver bem materialmente, mas, sendo solidários com o nosso próximo mais necessitado e buscando sempre a justiça e a fraternidade.

QUE DEUS ABENÇOE A TODOS!

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Amor


Carmélia Cândida
Cadeira n.º 2

 

A Mãe e o Filho - Gustav Klimt



Havia os abraços

Os sorrisos, as conversas

Os afagos, o colo, os mimos

Um carinho sem fim

Há a saudade

Um coração sufocado

Uma vida se esvaindo

A dor da falta

A saudade. A saudade.

O pesar, a impotência

A aceitação

A entrega, enfim

Há uma mãe

Há uma filha

Haverá sempre o amor

O que ligará as duas

Para sempre