Márcio Simeone
Cadeira n.º 8
Olhou para a máquina de escrever, a única sobrevivente
naquele espaço de uma época especial, o símbolo de uma era em que ainda sonhava
com os velhos ideais. A vida se escrevia ali, uma vida mecânica, feita de
espaços, tabulações, dedos sujos de tinta e com calos na ponta, duzentos toques
por minuto. Movida a energia humana. Sim, este era o último elo. Nada mais ali remetia
àquela faina datilográfica, àquele frenesi da conclusão dos textos, àquele
silêncio profundo que se seguia à retirada da última folha do carro, missão cumprida,
cigarro aceso com mérito, o alívio depois de uma guerra travada com as teclas, ao
martelar intenso que já lhe doía os ouvidos. Lembrava-se de que ela nunca reclamou
quando derramava café no teclado ou descontava impaciência, maltratando as
teclas com força. E que ela também não se incomodou, nem por um momento, com
seus vícios de linguagem (nem quaisquer outros). As palavras eram compostas
cuidadosamente, pensadas quase sem erros, apareciam magicamente impressas e
pareciam ganhar relevo e saltar para cima da máquina. Muito tempo a datilografar
provocava miragens, uma alucinação das palavras viventes que, num movimento
incessante, desciam da cabeça, passavam pelos dedos, pulavam alegres para o
papel e de lá espirravam para o ambiente (tinham cheiro de óleo, é verdade). Travava
um diálogo com a máquina, numas vezes terno e doce, noutras áspero, cortante, a
descontar a raiva no papel, arrancado de um puxão, amassado e deitado à
lixeira. Por ela tirava de si todo amor e todo ódio. Fazia valer. Noites viradas
na escrita e lhe doía a cabeça e a letra “a”. Desprezava os “cata-milhos”, não pela
incompetência, mas pelo tratamento injusto que dispensavam ao equipamento. Hoje
a velha máquina está naquele canto, pronta a funcionar, caso troque a fita
ressecada. Ela não tem mistérios, não guarda segredos, corresponde exatamente
aos comandos. Não se pode culpá-la de nada. Nunca se cansou, nunca pediu mais
nada que não uma fita nova e os carinhos da limpeza e da lubrificação. Não mais
se lembra qual foi seu primeiro texto nela produzido. Melhor assim, porque
gostava de pensar que era uma carta de amor. Pouco provável que não tenha sido
uma insípida e inodora ata de uma infindável reunião, mas a história é só sua e
pode contá-la como queira. Importa que tudo o mais tenha sido escrito, dia após
dia. E que ela ainda esteja ali, parte, prótese, testemunha, como a dizer que
os velhos ideais são os mesmos, ainda vivem e fazem mover as palavras.
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