sábado, 19 de outubro de 2019

À MÁQUINA

Márcio Simeone
Cadeira n.º 8


Olhou para a máquina de escrever, a única sobrevivente naquele espaço de uma época especial, o símbolo de uma era em que ainda sonhava com os velhos ideais. A vida se escrevia ali, uma vida mecânica, feita de espaços, tabulações, dedos sujos de tinta e com calos na ponta, duzentos toques por minuto. Movida a energia humana. Sim, este era o último elo. Nada mais ali remetia àquela faina datilográfica, àquele frenesi da conclusão dos textos, àquele silêncio profundo que se seguia à retirada da última folha do carro, missão cumprida, cigarro aceso com mérito, o alívio depois de uma guerra travada com as teclas, ao martelar intenso que já lhe doía os ouvidos. Lembrava-se de que ela nunca reclamou quando derramava café no teclado ou descontava impaciência, maltratando as teclas com força. E que ela também não se incomodou, nem por um momento, com seus vícios de linguagem (nem quaisquer outros). As palavras eram compostas cuidadosamente, pensadas quase sem erros, apareciam magicamente impressas e pareciam ganhar relevo e saltar para cima da máquina. Muito tempo a datilografar provocava miragens, uma alucinação das palavras viventes que, num movimento incessante, desciam da cabeça, passavam pelos dedos, pulavam alegres para o papel e de lá espirravam para o ambiente (tinham cheiro de óleo, é verdade). Travava um diálogo com a máquina, numas vezes terno e doce, noutras áspero, cortante, a descontar a raiva no papel, arrancado de um puxão, amassado e deitado à lixeira. Por ela tirava de si todo amor e todo ódio. Fazia valer. Noites viradas na escrita e lhe doía a cabeça e a letra “a”. Desprezava os “cata-milhos”, não pela incompetência, mas pelo tratamento injusto que dispensavam ao equipamento. Hoje a velha máquina está naquele canto, pronta a funcionar, caso troque a fita ressecada. Ela não tem mistérios, não guarda segredos, corresponde exatamente aos comandos. Não se pode culpá-la de nada. Nunca se cansou, nunca pediu mais nada que não uma fita nova e os carinhos da limpeza e da lubrificação. Não mais se lembra qual foi seu primeiro texto nela produzido. Melhor assim, porque gostava de pensar que era uma carta de amor. Pouco provável que não tenha sido uma insípida e inodora ata de uma infindável reunião, mas a história é só sua e pode contá-la como queira. Importa que tudo o mais tenha sido escrito, dia após dia. E que ela ainda esteja ali, parte, prótese, testemunha, como a dizer que os velhos ideais são os mesmos, ainda vivem e fazem mover as palavras.

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