José Roberto Pereira
Cadeira n.º 12
“Primeiro, seus olhos perdidos se
encontraram com os meus. O reencontro provocou um sorriso tímido e feliz, o
coração disparou, faltou ar e sensatez mútua. Depois seu cheiro impregnou meu
entorno, suas mãos chegaram primeiro que a boca, que, entreaberta, foi
libertando desejos indecentes. Perdi os comandos e os sentidos, mesmo sentindo
todos os sentimentos que são permitidos sentir. Não voltei mais em mim...”
O marido parou a leitura e
esmurrou a escrivaninha da biblioteca como se quisesse parti-la ao meio.
Respirou fundo, tentando buscar uma calma que jamais conseguiria. Foi à janela
e escancarou-a para que o ar do fim de tarde entrasse no ambiente. Voltou à
escrivaninha e abriu outra página, tinha a esperança de ler outros escritos que
nada tinham a ver com as linhas lidas na página em que abria. Os olhos
percorreram as primeiras palavras, mas não teve coragem de pronunciá-las, nem
mesmo num sussurro imperceptível.
“Um calor sem fim adentrava a
sala de costura. O pensamento ia e vinha junto com o vaivém da agulha furando a
seda turca azul com flores lilás. Os cabelos estavam amarrados num coque mal
feito, deixando meu pescoço à mostra. Propositalmente à mostra. A monotonia das
horas foi quebrada quando senti seus passos por detrás da beger. Parei a
costura, depositei a agulha no carretel de linha, tive receio de que a agulha
nos ferisse de alguma maneira. Respirei fundo e fiquei alguns segundos
intermináveis à espera de que os passos encurtassem a distância. Não tinha a
menor noção do espaço entre nós. Eu aguardava algum toque ou ação
inconsequente, ali mesmo. Tive a certeza de que minha nunca estava sendo
apreciada como uma jóia da realeza. Comecei a respirar ofegantemente e por
pouco não me virei e me atirei em seus braços. Torcia as mãos, tentando manter
a calma. A ansiedade estava no limite. Ou eu me virava ou ele se atirava em mim
através da minha nuca desnuda. Visivelmente desnuda. Mas o que eu queria mesmo
era ser...”
Transtornado, o marido empurrou a
escrivaninha, chutou a cadeira e caminhou até lareira, tentando se manter
calmo. Não reconhecia a dona daqueles relatos. Não poderia ser sua esposa,
tinha total certeza disso. A letra era bem parecida, talvez idêntica, mas não
era dela. Não, não era! Disso, não tinha dúvida. Andou pelo ambiente com os
escritos nas mãos. Por um instante, se arrependeu de ter aberto o diário e ter
lido aqueles malditos escritos. Não deveria ter feito aquela violação, agora
pagava um preço infernal pelo ato. Outros pensamentos passavam-lhe pela cabeça:
se não tivesse folheado aquele diário, esquecido displicentemente sobre a
escrivaninha da biblioteca, jamais saberia daquelas desmoralizações. E se
aquele diário fosse de uma amiga?... Mas não poderia ser. Estava casado há dois
meses e não tiveram visitas. Os olhos ficaram rasos d’água. Pensou que a esposa
talvez fosse esquizofrênica ou algo parecido. Mas não... Também não poderia
ser. Estava perdido em dúvidas e interrogações. Nem percebeu que a noite tinha
chegado e que o fogo da lareira ardia em chamas. Sentou-se ao lado da lareira e
abriu outra página.
“Por várias vezes perdi os
sentidos....”
Não teve coragem de continuar a leitura. Quando
levou a mão à cabeça em sinal de completo desespero, foi surpreendido pela
porta da biblioteca, que se abria. Seus olhos se encontraram com os da esposa;
os dele estavam coléricos, os dela estavam angelicais. Ele levantou-se olhando
fixamente para ela e atirou o diário, aquela semente da discórdia, no fogo da
lareira. Febrilmente colérico, andou num tom de marcha fúnebre e marcou o rosto
alvo da esposa jovem com os cinco dedos da mão. Ela apoiou-se na porta para não
cair. Reergueu-se. Caminhou a passos rápidos e seguros em direção ao escuro e
entrou na alcova. Sentia indignação pela violência dos dois atos: pela bofetada
e pela leitura de seu diário. Atirou-se no breu da noite e na poltrona da
alcova, tentando entender a atitude do marido.
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