quinta-feira, 10 de outubro de 2019

A alcova

José Roberto Pereira
Cadeira n.º 12



“Primeiro, seus olhos perdidos se encontraram com os meus. O reencontro provocou um sorriso tímido e feliz, o coração disparou, faltou ar e sensatez mútua. Depois seu cheiro impregnou meu entorno, suas mãos chegaram primeiro que a boca, que, entreaberta, foi libertando desejos indecentes. Perdi os comandos e os sentidos, mesmo sentindo todos os sentimentos que são permitidos sentir. Não voltei mais em mim...”

O marido parou a leitura e esmurrou a escrivaninha da biblioteca como se quisesse parti-la ao meio. Respirou fundo, tentando buscar uma calma que jamais conseguiria. Foi à janela e escancarou-a para que o ar do fim de tarde entrasse no ambiente. Voltou à escrivaninha e abriu outra página, tinha a esperança de ler outros escritos que nada tinham a ver com as linhas lidas na página em que abria. Os olhos percorreram as primeiras palavras, mas não teve coragem de pronunciá-las, nem mesmo num sussurro imperceptível.
“Um calor sem fim adentrava a sala de costura. O pensamento ia e vinha junto com o vaivém da agulha furando a seda turca azul com flores lilás. Os cabelos estavam amarrados num coque mal feito, deixando meu pescoço à mostra. Propositalmente à mostra. A monotonia das horas foi quebrada quando senti seus passos por detrás da beger. Parei a costura, depositei a agulha no carretel de linha, tive receio de que a agulha nos ferisse de alguma maneira. Respirei fundo e fiquei alguns segundos intermináveis à espera de que os passos encurtassem a distância. Não tinha a menor noção do espaço entre nós. Eu aguardava algum toque ou ação inconsequente, ali mesmo. Tive a certeza de que minha nunca estava sendo apreciada como uma jóia da realeza. Comecei a respirar ofegantemente e por pouco não me virei e me atirei em seus braços. Torcia as mãos, tentando manter a calma. A ansiedade estava no limite. Ou eu me virava ou ele se atirava em mim através da minha nuca desnuda. Visivelmente desnuda. Mas o que eu queria mesmo era ser...”
Transtornado, o marido empurrou a escrivaninha, chutou a cadeira e caminhou até lareira, tentando se manter calmo. Não reconhecia a dona daqueles relatos. Não poderia ser sua esposa, tinha total certeza disso. A letra era bem parecida, talvez idêntica, mas não era dela. Não, não era! Disso, não tinha dúvida. Andou pelo ambiente com os escritos nas mãos. Por um instante, se arrependeu de ter aberto o diário e ter lido aqueles malditos escritos. Não deveria ter feito aquela violação, agora pagava um preço infernal pelo ato. Outros pensamentos passavam-lhe pela cabeça: se não tivesse folheado aquele diário, esquecido displicentemente sobre a escrivaninha da biblioteca, jamais saberia daquelas desmoralizações. E se aquele diário fosse de uma amiga?... Mas não poderia ser. Estava casado há dois meses e não tiveram visitas. Os olhos ficaram rasos d’água. Pensou que a esposa talvez fosse esquizofrênica ou algo parecido. Mas não... Também não poderia ser. Estava perdido em dúvidas e interrogações. Nem percebeu que a noite tinha chegado e que o fogo da lareira ardia em chamas. Sentou-se ao lado da lareira e abriu outra página.
“Por várias vezes perdi os sentidos....”
Não teve coragem de continuar a leitura. Quando levou a mão à cabeça em sinal de completo desespero, foi surpreendido pela porta da biblioteca, que se abria. Seus olhos se encontraram com os da esposa; os dele estavam coléricos, os dela estavam angelicais. Ele levantou-se olhando fixamente para ela e atirou o diário, aquela semente da discórdia, no fogo da lareira. Febrilmente colérico, andou num tom de marcha fúnebre e marcou o rosto alvo da esposa jovem com os cinco dedos da mão. Ela apoiou-se na porta para não cair. Reergueu-se. Caminhou a passos rápidos e seguros em direção ao escuro e entrou na alcova. Sentia indignação pela violência dos dois atos: pela bofetada e pela leitura de seu diário. Atirou-se no breu da noite e na poltrona da alcova, tentando entender a atitude do marido.

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