sábado, 27 de abril de 2019

Lembranças e saudades

Carmélia Cândida
Cadeira n.º 2 



Minha mãe me levava para pescar
“Tem que ficar caladinha
Para não espantar os peixes”
Olhando para o mato
Na beira do rio
Eu morria  de medo
De aparecer uma cobra
Mas ela estava comigo
E eu me sentia segura

Minha mãe me ensinava versos e canções
Me levava para ver o Carnaval
Os desfiles de 7 de setembro
Cuidando da lida diária
Cantava e cantava
Quando terminava de me vestir e pentear
Pegava-me no colo e levava-me ao espelho
“Olha como ficou bonita!”
Depois terminava tudo com um beijo

Meu pai me contava histórias
Tantas que foi preciso
Um espaço bem grande no coração
Só para guardá-las
Ele chegava cansado do trabalho
Mas vinha sempre com um sorriso
E disposição para nos aconchegar
Aos domingos, era “lei” nos levar à missa das crianças
E, na volta para casa, se dinheiro tinha
Me dava a felicidade em forma de sorvete

Minhas duas irmãs mais velhas
Ajudavam nos cuidados comigo
Porque eram tantos filhos
Que minha mãe não dava conta de tudo
Me levavam para passear
E quando recebiam pagamento
Me levavam à “rua Direita”
E sempre me faziam um agrado
Acabaram sendo como “segundas mães”

Meu irmão mais novo
Era meu melhor companheiro
Está certo que a gente brigava
Coisa comum de irmãos pequenos
Mas sempre defendíamos
Um ao outro
E o amor era maior
E até hoje tenho o sentimento
De que ele é o irmãozinho
A quem devo proteger

Quantas lembranças! Quantas saudades!
Tudo vai ficando para trás
Mas nunca, nunca distante
Porque tudo vive intensamente
Como uma chama brilhante
Que nunca se apaga
Dentro de mim.

sábado, 20 de abril de 2019

Quando uma homenagem ultrapassa os limites de homenagem


Geraldo Phonteboa
Cadeira n.º 14 


Meu pai, assim com toda pessoa, possuía algumas características que o tornava único. Dentre estas características uma era para mim marcante: o silêncio. Não um silêncio de ausência, distanciamento, não. Seu silêncio era de uma presença tão forte e marcante que nos forçavam a falar qualquer coisa... Era uma coisa absurda. O silêncio de meu pai dava importância e sabedoria à meu pai. E esta sabedoria transbordava quando abria a boca para falar alguma coisa. Nesses momentos que ficava em silêncio era a gente, só para ouvi-lo. E fala serenamente, de tom baixo e vagarosamente, como se cada palavra tivesse um sabor único que ele precisava sentir em sua boca.
Foi pensando nisso que depois que o silêncio de meu pai tornou-se eterno consegui expressar esta sua característica em forma de poema e lhe rendi esta homenagem... mas a homenagem ganhou outras dimensões, de modo particular depois que minhas irmãs e irmãos a conheceram e leram... Uma de minhas irmãs, ao terminar de ler o poema, já com lágrimas correndo sobre a face, olhou para mim e disse: Papai está aqui... pude sentir o seu silêncio... obrigado! Depois disso o poema não saiu mais de sua vista, está lá preso ao lado da geladeira por um imã.

O Silêncio de meu pai

O silêncio de meu pai
Era repleto de significados...
Estava ali do meu lado
Por um longo tempo
Sem pronunciar som algum
E como comunicava...

O silêncio de meu pai
Ocupava todos os espaços de meu ser
E provocava em mim reações descabidas
E eu insistia em falar...
E não ouvia plenamente
O silêncio de meu pai.

O silêncio de meu pai
Era uma pausa no barulho do mundo
Era uma busca de um novo sentido
De um novo momento
De um no pensamento.

O silêncio de meu pai
E, agora, eterno.
E então, percebo
Que meu pai tornou-se esterno
No próprio silêncio
Que era o silêncio de meu pai.

No silencio de meu pai
Calo-me.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Timidez

Pedro Luiz Gonzaga
Cadeira n.º 18 

Estrela solitária
Pequenina chama que no céu cintila
Só lutas contra a imensidão negra do firmamento
Sombras através da eternidade envolvem-te
Quase não se pode perceber seu luzir.

Distante, bem distante notam-se outras que
Unidas emanam luminosidade abundante e
Unidas dissipam com mais facilidade o
Manto negro do firmamento.

E assim através de incontáveis eras estarão
Sempre unidas
Grandes mundos que se tornam ainda mais grandes
Com a presença de outros.

Mais que adianta tanta grandeza se eles não
Conseguem ser autênticos,
Se toda a luz que emitem possui força devido o
Luzir de outros.

Mas tu não minha estrelinha, o seu luzir é autêntico,
Pois estás só, a única companhia que possuis é o teu
Próprio mundo e tu te ocultas no interior
Quantos mistérios encerram dentro dessa pequenina
Brasinha suspensa na amplidão.

Saiba que abaixo, bem abaixo, existe um ser que toda noite
Se envolve só no manto negro para admirar-te,
Pois apesar de sermos diferentes, distantes e sós
Estaremos eternamente unidos pela mesma timidez.

sábado, 13 de abril de 2019

Café com acadêmicos na Paraliteratura




Dentro da programação da Paraliteratura 2019, realizou-se na Casa da Cultura, na manhã de 14 de abril, um café que reuniu acadêmicos da Academia de Letras de Para de Minas, da Academia Itaunense de Letras e da Academia Divinopolitana de Letras. A escritora Ana Faria, convidada da Paraliteratura, apresentou duas de suas publicações e falou sobre sua experiência de escrita e da edição em formato tradicional e em plataformas digitais. O Diretor de Cultura da Secretaria Municipal de Cultura, Comunicação Institucional, Esporte Lazer e Turismo de Para de Minas, José Roberto Pereira, discorreu sobre algumas das experiências vividas no evento deste ano. O contador de histórias Gugu Moicano, também convidado da Paraliteratura, falou sobre sua experiência de trabalho com o público infantojuvenil. Na sequência, contou uma história, um conto chileno tradicional. Os presentes receberam obras de escritores das academias, sorteadas no evento. 



A Paraliteratura contou com uma intensa programação, com contrações de histórias, conversas com escritores e também com a tradicional Feira de Livros, que movimentou a Casa da Cultura.

(fotos: Márcio Simeone)

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Bela e última Flor do Lácio

Conceição Cruz
Cadeira n.º 4



Bela e última Flor do Lácio
Em berço histórico, brasileiros e portugueses se irmanam na
Linguagem - de Camões, de Pessoa, de Saramago
A Bilac, Gonçalves Dias, Cecília Meireles...

E também ao Rosa, ao Jorge, o Amado Brasileiro!

Um imensurável legado imaterial é a 
Língua Portuguesa viva! Por vezes, no
Trato da oralidade se manifesta, por outras, 
Intrigante na escrita, nos
Meios cultos ou técnicos...
Aqui e em conexões atlânticas! 

Ferdinand de Saussure - considerado o Pai da 
Linguística moderna - que
O diga!  Ela, a Língua Portuguesa, tornou-se partícipe da vida de
Reis, de rainhas, de soldados, de camponeses,

De imperadores, do povo, de nativos
Ou não! O certo é que a nossa

Língua se diferencia das demais! Guarda, em si,
A possibilidade singular de, em diferentes formas,
Colocar - em diversas palavras - os mais
Íntimos e nobres sentimentos!  Enfim, tudo
O que habita a alma e o coração da gente!

terça-feira, 9 de abril de 2019

Os trabalhadores da arte

José Roberto Pereira
Cadeira n.º 12


Novamente usaram nosso ofício de trabalhadores da arte para garantir vantagens, para aparecerem como destaque em mídia fácil. Atacam-nos, covardemente.  Andam nos rebaixando a algo desnecessário ou nos comparando a uma sanguessuga que nunca está saciada.

Em outros tempos, já chamaram nosso trabalho de alimento da alma, porém, atualmente, saciados, vomitam onde tantas vezes se alimentaram. Afirmavam também que nosso trabalho humanizava. Mandaram-nos para áreas sociais aonde o poder governamental não conseguia chegar. Após o trabalho iniciado, a casa arrumada, o povo com a voz levantada, instruído pelas ações culturais às quais foram apresentados, aqueles que estavam no poder (ou ainda estão), vieram e silenciaram povo e artista. Cortaram quaisquer tipos de verbas ou iniciativas a fim de impedir que as pessoas da área assistida continuassem cantando suas desgraças ou alimentando seus sonhos. E continuam usando nosso trabalho para chegarem ao poder, pronunciando em palanques que a arte e cultura são essenciais à formação de qualquer indivíduo, mas depois ignoram nossos produtos. Atacam-nos pelas costas porque, muitas vezes, são incapazes de dialogar frente a frente. Fecharam algumas de nossas casas e engavetaram nossas pastas.

Já fomos chamados de brisa fresca que acalenta as mazelas humanas.  Um bom espetáculo, um bom livro, um bom filme – entre outras produções dos trabalhadores da arte – são capazes de inaugurar sentimentos, sensações e renovar a vida. Em momentos de stress, de patologia, de angústia, de cansaço, usam nosso trabalho, usufruem de toda a cadeia produtiva artística para se recuperarem, mas depois blasfemam que não precisam de artista. De outros trabalhadores, sim; mas, do artista, não. Ignoram que uma simples roupa, um sapato e alguns assessórios indispensáveis ao nosso dia-a-dia estão na área de atuação dos trabalhadores da arte. A ignorância torna as pessoas cegas e canalhas.
Aqueles que usaram do nosso suor para conseguir a cadeira do poder andam tentando nos subtrair leis que nos concederam direitos. Cortam nossas míseras verbas conquistadas ao longo das décadas de articulações entre poder público e trabalhadores da arte, criando ambientes hostis e nos colocando uns contra os outros. Até de malandro e vagabundo nos chamam. O que nós conquistamos, porém, ninguém nos tira. Estaremos sempre um passo à frente, nunca retrocederemos aos porões da estupidez governamental de direita ou de esquerda.

Até o momento, fomos brisa fresca, favorável, alvo fácil para tudo aquilo que nos é jogado e blasfemado. Mas, se quisermos, nós, trabalhadores da arte, poderemos nos transformar em tempestade tropical, tornado, furação destruidor e impiedoso. E poderão ver do que é capaz “um vento fresco”. Um grupo se agiganta quando quer. Aí tudo pode mudar. O que antes refrescava poderá esquentar. Podemos percorrer distâncias, varrendo um país inteiro, usando as mais convincentes palavras, sem o apelo da persuasão ou da mentira em mídia sem credibilidade – apenas dizendo a verdade. Como furação, poderemos destruir tudo. Colocar pedra sobre pedra e recomeçar. Mas, como somos arte, cultura viva e história, não podemos ignorar a ética, o bom senso e eliminar nossos inimigos. Porque somos resistência, como sempre fomos ao longo da formação das sociedades nas ilhas e continentes. Somos água, sempre nos movendo e nos adaptando às intempéries. O tempo, os homens, os ideias passam ou mudam. A arte e seus trabalhadores agregam, se refazem, se revezam, se reconstroem, tornam-se história. Estamos no tempo de sermos furação, porém com a delicadeza de permanecermos brisa.

domingo, 7 de abril de 2019

ALPM participa da Paraliteratura 2019



A oitava edição da Paraliteratura, feira de incentivo à leitura, será realizada de 11 a 13 de abril. É uma iniciativa da Prefeitura Municipal, que conta com parceria da Academia de Letras de Pará de Minas. A feira de livros será realizada na Praça Torquato de Almeida, no centro da cidade e contará ainda com outros eventos, tais como apresentações artísticas, conversas com escritores e contação de histórias. O tema deste ano é "A leitura ilumina o mundo da gente". As acadêmicas Ângela Leite Xavier e Malluh Praxedes participarão de atividades prévias de divulgação do evento nos dias 8, 9 e 10 de abril em escolas da cidade, ao lado da escritora Tita de Lima e Silva. As três escreveram e lançaram recentemente o livro "3 Primas - Crônicas e Memórias".

A exposição e a venda de livros terá entrada gratuita e funcionará nos dias 11 e 12 de abril, das 8 às 20h, e no dia 13 de abril, das 8 às 12h. No dia 13/04, sábado, às 8:30h, será realizado um café com escritores da Academia de Letras de Pará de Minas da Academia Itaunense de Letras e da Academia Divinopolitana de Letras, na Casa da Cultura (Praça Torquato de Almeida). Para participar deste evento, serão disponibilizados 30 convites para o público que podem ser retirados no dia 12/04 gratuitamente na Casa da Cultura.

Veja a programação completa do evento aqui.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Fixo, nos infinitos


Márcio Simeone
Cadeira nº 8

Cansado de andar, farto do tumulto cheio de estímulos e do moto perpétuo da cidade, ansiava por um lugar onde repousar os sentidos. Até então, mesmo que forçasse os pés cansados a pararem, o resto de mim seguia sempre adiante, sem descanso, recolhendo mais e mais informações, processando tudo na velocidade requerida e as novas e novas solicitações para colocar-me de novo a mover-me. Imaginava como seria se pudesse, ao menos por um tempo, ser uma pedra, ou uma estátua daqueles heróis da nação que só nos observavam cruzar aquelas praças e jardins. Lembrei-me das estátuas vivas do calçadão. Hoje mesmo havia visto  uma, de Hermes; sem fazer caso da velocidade dos transeuntes e da tropelia do comércio. Devia ter dedicado mais tempo ao deus. Não segui a quase total indiferença, mas cuidei o suficiente de verificar que mirava seu ponto fixo lá onde as paralelas da rua finalmente se encontravam e abraçavam o enorme largo, livre das sombras dos edifícios e, por isso, bem mais iluminado pelo sol da tarde. Na sequência do caminho pensei o quanto aquele olhar posto no infinito trazia a necessária concentração, mas a mim parecia que aquela aparente imobilidade corporal talvez estivesse a acionar furiosamente os motores da alma, a alma de Hermes, do mensageiro incansável dos deuses, o viajante. Ali parado, simbolizava o movimento frenético da via entupida de gente, dos muitos mensageiros que, como ele, têm asas nos pés (e correm hoje como se isso ainda fosse necessário para a entrega das mensagens). Sua mudez não fazia justiça à sua fama de eloquência e não pude deixar de pensar que ali fixado, se achava temporariamente surdo. Segui meu destino, para o lado oposto ao infinito de Hermes, não sem antes deixar-lhe algum trocado de oferenda, contudo lamentando que minha pressa não me desse o tempo necessário para admirar mais a estátua e esperar, a contar no relógio, quanto tempo ainda aguentaria manter-se naquela condição. E, quem sabe, com alguma perversidade, ficar parado o mais possível e olhar fixo nos olhos do deus. Nunca vi ninguém fazer isso. Nem sei quem estranharia primeiro: se os passantes ou o deus... Os primeiros talvez me rodeassem, curiosos, quem sabe à espera da reação da estátua. Já esta, por ser deus, talvez não desviasse seus olhos do seu infinito particular para encarar os meus, demonstrando todo o seu poder. Fiquei ainda por um tempo a pensar que alguém possivelmente já tentou isso. Por um momento, olhando ao meu redor, lembrei que a multidão talvez não se importasse mesmo com essas questões, tão absorvidas pelas necessidades de se deslocarem naquele espaço e pelas milhares de mensagens que agora mesmo estão recebendo, processando, emitindo. Ali estava só Hermes, a nos desafiar, absolutamente suspenso em seus pés alados.

***

Alcancei a esplanada do miradouro, de onde, à sombra, podia ver o rio e dar descanso aos pés doloridos. Foi então que escolhi meu infinito, fixando meus olhos nele, como a estátua humana. Lá bem adiante estava um barco, de pescadores, imóvel, cujas cores alegres harmonizavam naquele momento com o tom do rio. Naquele pequeno ponto distante, concentrando o olhar como feixes de luz, vi um pescador, logo vi dois e provavelmente só eles. Persisti. Depois de algum tempo que não medi, sem desviar minha atenção, pareceu-me entrar em outra dimensão. Então estava no barco e de lá avistava a cidade. A orla parecia escurecida, mesmo que ainda faltasse muito para o anoitecer. Ou não. Ilusão do tempo? Os sons à minha volta desapareceram e talvez tenha ouvido apenas os estranhos ruídos do meu corpo. Agora olhava de frente o Hermes paralisado, em pose de movimento. Eu o desafiava. Saí do transe sem que se desse o resultado daquele embate. Ou pode ser por isso mesmo que o deus tenha vencido, não importa. Era mesmo quase-tarde, quase-noite e tudo se agitava. Alguém estava à minha procura. Naquele instante me veio à memória o primeiro momento em que fixei meu olhar em você. Foi quando dormia que me quedei imóvel, onde só havia paz e silêncio. Dei-me conta de que ali era você o infinito e deu-se o mesmo efeito. Cheguei a pensar que eu próprio me olhava, que o tempo era outro e nossas almas se agitavam, com os corpos em repouso. Foi um momento só meu, em que fui o próprio Hermes, congelado na calçada. Sonhei naquela noite que você despertava meus movimentos com um beijo suave. Mas até hoje não sei se era sonho. Isso me fez desejar que um dia meu infinito fosse o fundo dos seus olhos, lugar que não ousei ainda alcançar. Quase morro só em pensar quantas ilusões verei e de imaginar quanto tempo haveremos de resistir imóveis.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Solstício de Inverno


Fátima Peres
Cadeira n.º 15

Era o primeiro dia do inverno e estava muito frio. Cansada, foi deitar um pouco. As costas ardiam de tanto se curvar. Fechou os olhos que também ardiam. E uma lágrima correu pelo lado esquerdo do rosto molhando o travesseiro. De repente as lembranças começaram a polvilhar seus pensamentos. Se viu pelas calles, pelas peatonales, pelas cafeterias, pela Vélez Sarsfield onde tudo acontecia. O cheiro do croissant com chocolate e do café colombiano a puxaram para outra dimensão.

Tinha que sair rápido. O encontro era às 10 horas da noite. O Cabildo era o point. A música, o tango. E, no meio do caminho, luzes baixas e sombras. Com passos apertados, firmes e objetivos, para não ser pega de surpresa numa esquina qualquer, tratou logo de chegar ao compromisso. De longe já se ouvia o bandoneon. Com a excitação do primeiro contato imaginou-se dançando com desenvoltura na praça San Martín, aos olhares do público atento.

Uma brasileira que morou aqui, certa vez, aprendeu a dançar e acabou se tornando uma grande bailarina, disse um senhor argentino. Com seus 70 anos ainda guardava traços de uma beleza que outrora, provavelmente, se insinuava caliente para as moças. Convidou-a para bailar. Desajeitada, trocaram alguns passos. E assim foi, até que o professor desligou aquela vitrola antiga com discos de Gardel.
Nos vemos amanhã?
Espero que sim, respondeu. Enrolou a echarpe no pescoço e saiu novamente às pressas.

O vento frio, de cortar a pele fina e delicada, só deu trégua quando já estava sentada, na mesa de sempre, dentro da Sopelsa, na 9 de Julio com La Cañada. A garçonete, já acostumada, trouxe, sem perguntar, o Tilo com tostado para esquentar a alma e matar a fome. E, para finalizar, na saída, o irresistível sorvete de dulce de leche completava os prazeres do dia. Os passos até o número 90 daquela rua eram poucos. Já na rampa do prédio onde morava ouvia-se a agitação dos cartolas. Pela entrada lateral do edifício ficava a sede de um dos times de futebol da cidade.

Todas as vezes que ouvia aquele burburinho sentia-se mais animada, mais alegre. Em seu país, futebol também dava muita conversa e discussões. – Tudo igual, disse ao porteiro, que lhe respondeu com alguns grunhidos. Um senhor alto, magro, de olhos azuis que falava um espanhol que mais parecia um dialeto. Simpático, porém, incompreensível. Mas tudo bem, ela sabia que ele a havia compreendido.

Subiu e foi se ajeitar para dormir. Estava cansada com tantas atividades do dia, de ouvir as histórias da professora, la señora Bierbraun. Era filha de uma judia argentina com um alemão. O avô, um ex-nazista nunca aceitou a união. Bierbraun contava histórias horríveis sobre ele e os alemães que foram viver na região depois da segunda guerra mundial.

Dizia também que, em uma pequena cidade próxima, ainda viviam alguns que foram comandados pelo Führer. Para visitá-la, era preciso pedir permissão. O turista, no entanto, não podia ficar além do tempo permitido pelos moradores. E era assim, com suas histórias, que la señora Bierbraun ia ensinando seus alunos – alemães, italianos, franceses, suíços e a brasileira – a língua de sua terra.

Mas já era tarde, precisava dormir. No dia seguinte, bem cedo, mesmo com o frio abaixo de zero, tinha que sair para fazer a prova final. A expectativa era grande e sua aprovação significava mais do que um diploma na mão. Tinha um gosto dulce de vitória sobre preconceitos. Quando o burburinho dos Cartolas da Liga se desfez, conseguiu cair no sono. Mas foi por pouco tempo. Lá pelas 11 da noite, o alarme de incêndio do prédio soou.

Um som ensurdecedor, pessoas batendo à porta, correria escada abaixo. Descabelada, de pijama e sem saber para onde ir, correu para fora do apartamento. Um vizinho alertou para não pegar o elevador. Desceu sete andares em meio a tanta aflição. Ao chegar à portaria viu que o porteiro acalmava as pessoas e dizia: los bomberos están en camino. A fumaça se espalhava por todo o prédio.

Quando a guarnição chegou foi logo abrindo todas as portas para localizar o foco do incêndio. De repente, o vizinho do 401 chega até o grupo de moradores, em pânico, e confessa que ele havia deixado o bife de chorizo queimar, enquanto assistia ao Atletico Talleres marcar o gol. - Por causa da fumaça, abri a porta. Neste momento os splinters e o alarme dispararam, disse o rapaz. Os moradores se entreolharam com cara de susto e raiva ao mesmo tempo. Mas ninguém disse absolutamente nada, afinal de contas, aquela era uma situação que poderia ocorrer com qualquer apaixonado. O vento frio que vinha da La Cañada fez com que a porta de vidro do prédio batesse forte. O barulho, intenso, assusta!...

Acorda, olha para o lado e vê sua mãe, deitada debaixo do edredom, resfolegando. Aliviada, sentiu uma felicidade infantil. Estava ali, de volta ao carinho familiar.