segunda-feira, 1 de abril de 2019

Solstício de Inverno


Fátima Peres
Cadeira n.º 15

Era o primeiro dia do inverno e estava muito frio. Cansada, foi deitar um pouco. As costas ardiam de tanto se curvar. Fechou os olhos que também ardiam. E uma lágrima correu pelo lado esquerdo do rosto molhando o travesseiro. De repente as lembranças começaram a polvilhar seus pensamentos. Se viu pelas calles, pelas peatonales, pelas cafeterias, pela Vélez Sarsfield onde tudo acontecia. O cheiro do croissant com chocolate e do café colombiano a puxaram para outra dimensão.

Tinha que sair rápido. O encontro era às 10 horas da noite. O Cabildo era o point. A música, o tango. E, no meio do caminho, luzes baixas e sombras. Com passos apertados, firmes e objetivos, para não ser pega de surpresa numa esquina qualquer, tratou logo de chegar ao compromisso. De longe já se ouvia o bandoneon. Com a excitação do primeiro contato imaginou-se dançando com desenvoltura na praça San Martín, aos olhares do público atento.

Uma brasileira que morou aqui, certa vez, aprendeu a dançar e acabou se tornando uma grande bailarina, disse um senhor argentino. Com seus 70 anos ainda guardava traços de uma beleza que outrora, provavelmente, se insinuava caliente para as moças. Convidou-a para bailar. Desajeitada, trocaram alguns passos. E assim foi, até que o professor desligou aquela vitrola antiga com discos de Gardel.
Nos vemos amanhã?
Espero que sim, respondeu. Enrolou a echarpe no pescoço e saiu novamente às pressas.

O vento frio, de cortar a pele fina e delicada, só deu trégua quando já estava sentada, na mesa de sempre, dentro da Sopelsa, na 9 de Julio com La Cañada. A garçonete, já acostumada, trouxe, sem perguntar, o Tilo com tostado para esquentar a alma e matar a fome. E, para finalizar, na saída, o irresistível sorvete de dulce de leche completava os prazeres do dia. Os passos até o número 90 daquela rua eram poucos. Já na rampa do prédio onde morava ouvia-se a agitação dos cartolas. Pela entrada lateral do edifício ficava a sede de um dos times de futebol da cidade.

Todas as vezes que ouvia aquele burburinho sentia-se mais animada, mais alegre. Em seu país, futebol também dava muita conversa e discussões. – Tudo igual, disse ao porteiro, que lhe respondeu com alguns grunhidos. Um senhor alto, magro, de olhos azuis que falava um espanhol que mais parecia um dialeto. Simpático, porém, incompreensível. Mas tudo bem, ela sabia que ele a havia compreendido.

Subiu e foi se ajeitar para dormir. Estava cansada com tantas atividades do dia, de ouvir as histórias da professora, la señora Bierbraun. Era filha de uma judia argentina com um alemão. O avô, um ex-nazista nunca aceitou a união. Bierbraun contava histórias horríveis sobre ele e os alemães que foram viver na região depois da segunda guerra mundial.

Dizia também que, em uma pequena cidade próxima, ainda viviam alguns que foram comandados pelo Führer. Para visitá-la, era preciso pedir permissão. O turista, no entanto, não podia ficar além do tempo permitido pelos moradores. E era assim, com suas histórias, que la señora Bierbraun ia ensinando seus alunos – alemães, italianos, franceses, suíços e a brasileira – a língua de sua terra.

Mas já era tarde, precisava dormir. No dia seguinte, bem cedo, mesmo com o frio abaixo de zero, tinha que sair para fazer a prova final. A expectativa era grande e sua aprovação significava mais do que um diploma na mão. Tinha um gosto dulce de vitória sobre preconceitos. Quando o burburinho dos Cartolas da Liga se desfez, conseguiu cair no sono. Mas foi por pouco tempo. Lá pelas 11 da noite, o alarme de incêndio do prédio soou.

Um som ensurdecedor, pessoas batendo à porta, correria escada abaixo. Descabelada, de pijama e sem saber para onde ir, correu para fora do apartamento. Um vizinho alertou para não pegar o elevador. Desceu sete andares em meio a tanta aflição. Ao chegar à portaria viu que o porteiro acalmava as pessoas e dizia: los bomberos están en camino. A fumaça se espalhava por todo o prédio.

Quando a guarnição chegou foi logo abrindo todas as portas para localizar o foco do incêndio. De repente, o vizinho do 401 chega até o grupo de moradores, em pânico, e confessa que ele havia deixado o bife de chorizo queimar, enquanto assistia ao Atletico Talleres marcar o gol. - Por causa da fumaça, abri a porta. Neste momento os splinters e o alarme dispararam, disse o rapaz. Os moradores se entreolharam com cara de susto e raiva ao mesmo tempo. Mas ninguém disse absolutamente nada, afinal de contas, aquela era uma situação que poderia ocorrer com qualquer apaixonado. O vento frio que vinha da La Cañada fez com que a porta de vidro do prédio batesse forte. O barulho, intenso, assusta!...

Acorda, olha para o lado e vê sua mãe, deitada debaixo do edredom, resfolegando. Aliviada, sentiu uma felicidade infantil. Estava ali, de volta ao carinho familiar.

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