Fátima
Peres
Cadeira
n.º 15
Era
o primeiro dia do inverno e estava muito frio. Cansada, foi deitar um
pouco. As costas ardiam de tanto se curvar. Fechou os olhos que
também ardiam. E uma lágrima correu pelo lado esquerdo do rosto
molhando o travesseiro. De repente as lembranças começaram a
polvilhar seus pensamentos. Se viu pelas calles,
pelas peatonales,
pelas cafeterias, pela Vélez Sarsfield onde tudo acontecia. O cheiro
do croissant com
chocolate e do café colombiano a puxaram para outra dimensão.
Tinha
que sair rápido. O encontro era às 10 horas da noite. O Cabildo era
o point. A música, o tango. E, no meio do caminho, luzes
baixas e sombras. Com passos apertados, firmes e objetivos, para não
ser pega de surpresa numa esquina qualquer, tratou logo de chegar ao
compromisso. De longe já se ouvia o bandoneon. Com a excitação do
primeiro contato imaginou-se dançando com desenvoltura na praça San
Martín, aos olhares do público atento.
– Uma
brasileira que morou aqui, certa vez, aprendeu a dançar e acabou se
tornando uma grande bailarina, disse um senhor argentino. Com seus 70
anos ainda guardava traços de uma beleza que outrora, provavelmente,
se insinuava caliente para
as moças. Convidou-a para bailar. Desajeitada, trocaram alguns
passos. E assim foi, até que o professor desligou aquela
vitrola antiga com discos de Gardel.
– Nos
vemos amanhã?
– Espero
que sim, respondeu. Enrolou a echarpe no pescoço e saiu novamente às
pressas.
O
vento frio, de cortar a pele fina e delicada, só deu trégua quando
já estava sentada, na mesa de sempre, dentro da Sopelsa, na 9 de
Julio com La Cañada. A garçonete, já acostumada, trouxe, sem
perguntar, o Tilo com tostado para esquentar a alma e matar a fome.
E, para finalizar, na saída, o irresistível sorvete de dulce
de leche completava
os prazeres do dia. Os passos até o número 90 daquela rua eram
poucos. Já na rampa do prédio onde morava ouvia-se a agitação dos
cartolas. Pela entrada lateral do edifício ficava a sede de um dos
times de futebol da cidade.
Todas
as vezes que ouvia aquele burburinho sentia-se mais animada, mais
alegre. Em seu país, futebol também dava muita conversa e
discussões. – Tudo igual, disse ao porteiro, que lhe respondeu com
alguns grunhidos. Um senhor alto, magro, de olhos azuis que falava um
espanhol que mais parecia um dialeto. Simpático, porém,
incompreensível. Mas tudo bem, ela sabia que ele a havia
compreendido.
Subiu
e foi se ajeitar para dormir. Estava cansada com tantas atividades do
dia, de ouvir as histórias da professora, la
señora
Bierbraun. Era filha de uma judia argentina com um alemão. O avô,
um ex-nazista nunca aceitou a união. Bierbraun contava histórias
horríveis sobre ele e os alemães que foram viver na região depois
da segunda guerra mundial.
Dizia
também que, em uma pequena cidade próxima, ainda viviam alguns que
foram comandados pelo Führer. Para visitá-la, era preciso pedir
permissão. O turista, no entanto, não podia ficar além do tempo
permitido pelos moradores. E era assim, com suas histórias, que la
señora Bierbraun
ia ensinando seus alunos – alemães, italianos, franceses, suíços
e a brasileira – a língua de sua terra.
Mas
já era tarde, precisava dormir. No dia seguinte, bem cedo, mesmo com
o frio abaixo de zero, tinha que sair para fazer a prova final. A
expectativa era grande e sua aprovação significava mais do que um
diploma na mão. Tinha um gosto dulce
de
vitória sobre preconceitos. Quando o burburinho dos Cartolas da Liga
se desfez, conseguiu cair no sono. Mas foi por pouco tempo. Lá pelas
11 da noite, o alarme de incêndio do prédio soou.
Um som ensurdecedor, pessoas batendo à porta, correria escada abaixo. Descabelada, de pijama e sem saber para onde ir, correu para fora do apartamento. Um vizinho alertou para não pegar o elevador. Desceu sete andares em meio a tanta aflição. Ao chegar à portaria viu que o porteiro acalmava as pessoas e dizia: los bomberos están en camino. A fumaça se espalhava por todo o prédio.
Quando
a guarnição chegou foi logo abrindo todas as portas para localizar
o foco do incêndio. De repente, o vizinho do 401 chega até o grupo
de moradores, em pânico, e confessa que ele havia deixado o bife de
chorizo queimar, enquanto assistia ao Atletico Talleres marcar
o gol. - Por causa da fumaça, abri a porta. Neste momento os
splinters e o alarme dispararam, disse o rapaz. Os moradores
se entreolharam com cara de susto e raiva ao mesmo tempo. Mas ninguém
disse absolutamente nada, afinal de contas, aquela era uma situação
que poderia ocorrer com qualquer apaixonado. O vento frio que vinha
da La Cañada fez com que a porta de vidro do prédio batesse forte.
O barulho, intenso, assusta!...
Acorda,
olha para o lado e vê sua mãe, deitada debaixo do edredom, resfolegando. Aliviada, sentiu uma felicidade infantil. Estava ali,
de volta ao carinho familiar.
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