Márcio Simeone
Cadeira nº 8
Cansado de andar,
farto do tumulto cheio de estímulos e do moto perpétuo da cidade, ansiava por
um lugar onde repousar os sentidos. Até então, mesmo que forçasse os pés
cansados a pararem, o resto de mim seguia sempre adiante, sem descanso,
recolhendo mais e mais informações, processando tudo na velocidade requerida e
as novas e novas solicitações para colocar-me de novo a mover-me. Imaginava
como seria se pudesse, ao menos por um tempo, ser uma pedra, ou uma estátua
daqueles heróis da nação que só nos observavam cruzar aquelas praças e jardins.
Lembrei-me das estátuas vivas do calçadão. Hoje mesmo havia visto uma, de Hermes; sem fazer caso da velocidade
dos transeuntes e da tropelia do comércio. Devia ter dedicado mais tempo ao
deus. Não segui a quase total indiferença, mas cuidei o suficiente de verificar
que mirava seu ponto fixo lá onde as paralelas da rua finalmente se encontravam
e abraçavam o enorme largo, livre das sombras dos edifícios e, por isso, bem
mais iluminado pelo sol da tarde. Na sequência do caminho pensei o quanto
aquele olhar posto no infinito trazia a necessária concentração, mas a mim
parecia que aquela aparente imobilidade corporal talvez estivesse a acionar
furiosamente os motores da alma, a alma de Hermes, do mensageiro incansável dos
deuses, o viajante. Ali parado, simbolizava o movimento frenético da via
entupida de gente, dos muitos mensageiros que, como ele, têm asas nos pés (e
correm hoje como se isso ainda fosse necessário para a entrega das mensagens).
Sua mudez não fazia justiça à sua fama de eloquência e não pude deixar de
pensar que ali fixado, se achava temporariamente surdo. Segui meu destino, para
o lado oposto ao infinito de Hermes, não sem antes deixar-lhe algum trocado de
oferenda, contudo lamentando que minha pressa não me desse o tempo necessário
para admirar mais a estátua e esperar, a contar no relógio, quanto tempo ainda
aguentaria manter-se naquela condição. E, quem sabe, com alguma perversidade,
ficar parado o mais possível e olhar fixo nos olhos do deus. Nunca vi ninguém
fazer isso. Nem sei quem estranharia primeiro: se os passantes ou o deus... Os
primeiros talvez me rodeassem, curiosos, quem sabe à espera da reação da
estátua. Já esta, por ser deus, talvez não desviasse seus olhos do seu infinito
particular para encarar os meus, demonstrando todo o seu poder. Fiquei ainda
por um tempo a pensar que alguém possivelmente já tentou isso. Por um momento,
olhando ao meu redor, lembrei que a multidão talvez não se importasse mesmo com
essas questões, tão absorvidas pelas necessidades de se deslocarem naquele
espaço e pelas milhares de mensagens que agora mesmo estão recebendo,
processando, emitindo. Ali estava só Hermes, a nos desafiar, absolutamente
suspenso em seus pés alados.
***
Alcancei a esplanada
do miradouro, de onde, à sombra, podia ver o rio e dar descanso aos pés
doloridos. Foi então que escolhi meu infinito, fixando meus olhos nele, como a
estátua humana. Lá bem adiante estava um barco, de pescadores, imóvel, cujas
cores alegres harmonizavam naquele momento com o tom do rio. Naquele pequeno
ponto distante, concentrando o olhar como feixes de luz, vi um pescador, logo
vi dois e provavelmente só eles. Persisti. Depois de algum tempo que não medi,
sem desviar minha atenção, pareceu-me entrar em outra dimensão. Então estava no
barco e de lá avistava a cidade. A orla parecia escurecida, mesmo que ainda
faltasse muito para o anoitecer. Ou não. Ilusão do tempo? Os sons à minha volta
desapareceram e talvez tenha ouvido apenas os estranhos ruídos do meu corpo.
Agora olhava de frente o Hermes paralisado, em pose de movimento. Eu o
desafiava. Saí do transe sem que se desse o resultado daquele embate. Ou pode
ser por isso mesmo que o deus tenha vencido, não importa. Era mesmo
quase-tarde, quase-noite e tudo se agitava. Alguém estava à minha procura.
Naquele instante me veio à memória o primeiro momento em que fixei meu olhar em
você. Foi quando dormia que me quedei imóvel, onde só havia paz e silêncio.
Dei-me conta de que ali era você o infinito e deu-se o mesmo efeito. Cheguei a
pensar que eu próprio me olhava, que o tempo era outro e nossas almas se
agitavam, com os corpos em repouso. Foi um momento só meu, em que fui o próprio
Hermes, congelado na calçada. Sonhei naquela noite que você despertava meus
movimentos com um beijo suave. Mas até hoje não sei se era sonho. Isso me fez
desejar que um dia meu infinito fosse o fundo dos seus olhos, lugar que não
ousei ainda alcançar. Quase morro só em pensar quantas ilusões verei e de
imaginar quanto tempo haveremos de resistir imóveis.
Márcio, como admiro sua palavra. Há anos, apesar de longo hiato, observo sua construção literária. Sua inteligência tem sido a base de tudo. Abraços. Márcio Varela
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