quinta-feira, 4 de abril de 2019

Fixo, nos infinitos


Márcio Simeone
Cadeira nº 8

Cansado de andar, farto do tumulto cheio de estímulos e do moto perpétuo da cidade, ansiava por um lugar onde repousar os sentidos. Até então, mesmo que forçasse os pés cansados a pararem, o resto de mim seguia sempre adiante, sem descanso, recolhendo mais e mais informações, processando tudo na velocidade requerida e as novas e novas solicitações para colocar-me de novo a mover-me. Imaginava como seria se pudesse, ao menos por um tempo, ser uma pedra, ou uma estátua daqueles heróis da nação que só nos observavam cruzar aquelas praças e jardins. Lembrei-me das estátuas vivas do calçadão. Hoje mesmo havia visto  uma, de Hermes; sem fazer caso da velocidade dos transeuntes e da tropelia do comércio. Devia ter dedicado mais tempo ao deus. Não segui a quase total indiferença, mas cuidei o suficiente de verificar que mirava seu ponto fixo lá onde as paralelas da rua finalmente se encontravam e abraçavam o enorme largo, livre das sombras dos edifícios e, por isso, bem mais iluminado pelo sol da tarde. Na sequência do caminho pensei o quanto aquele olhar posto no infinito trazia a necessária concentração, mas a mim parecia que aquela aparente imobilidade corporal talvez estivesse a acionar furiosamente os motores da alma, a alma de Hermes, do mensageiro incansável dos deuses, o viajante. Ali parado, simbolizava o movimento frenético da via entupida de gente, dos muitos mensageiros que, como ele, têm asas nos pés (e correm hoje como se isso ainda fosse necessário para a entrega das mensagens). Sua mudez não fazia justiça à sua fama de eloquência e não pude deixar de pensar que ali fixado, se achava temporariamente surdo. Segui meu destino, para o lado oposto ao infinito de Hermes, não sem antes deixar-lhe algum trocado de oferenda, contudo lamentando que minha pressa não me desse o tempo necessário para admirar mais a estátua e esperar, a contar no relógio, quanto tempo ainda aguentaria manter-se naquela condição. E, quem sabe, com alguma perversidade, ficar parado o mais possível e olhar fixo nos olhos do deus. Nunca vi ninguém fazer isso. Nem sei quem estranharia primeiro: se os passantes ou o deus... Os primeiros talvez me rodeassem, curiosos, quem sabe à espera da reação da estátua. Já esta, por ser deus, talvez não desviasse seus olhos do seu infinito particular para encarar os meus, demonstrando todo o seu poder. Fiquei ainda por um tempo a pensar que alguém possivelmente já tentou isso. Por um momento, olhando ao meu redor, lembrei que a multidão talvez não se importasse mesmo com essas questões, tão absorvidas pelas necessidades de se deslocarem naquele espaço e pelas milhares de mensagens que agora mesmo estão recebendo, processando, emitindo. Ali estava só Hermes, a nos desafiar, absolutamente suspenso em seus pés alados.

***

Alcancei a esplanada do miradouro, de onde, à sombra, podia ver o rio e dar descanso aos pés doloridos. Foi então que escolhi meu infinito, fixando meus olhos nele, como a estátua humana. Lá bem adiante estava um barco, de pescadores, imóvel, cujas cores alegres harmonizavam naquele momento com o tom do rio. Naquele pequeno ponto distante, concentrando o olhar como feixes de luz, vi um pescador, logo vi dois e provavelmente só eles. Persisti. Depois de algum tempo que não medi, sem desviar minha atenção, pareceu-me entrar em outra dimensão. Então estava no barco e de lá avistava a cidade. A orla parecia escurecida, mesmo que ainda faltasse muito para o anoitecer. Ou não. Ilusão do tempo? Os sons à minha volta desapareceram e talvez tenha ouvido apenas os estranhos ruídos do meu corpo. Agora olhava de frente o Hermes paralisado, em pose de movimento. Eu o desafiava. Saí do transe sem que se desse o resultado daquele embate. Ou pode ser por isso mesmo que o deus tenha vencido, não importa. Era mesmo quase-tarde, quase-noite e tudo se agitava. Alguém estava à minha procura. Naquele instante me veio à memória o primeiro momento em que fixei meu olhar em você. Foi quando dormia que me quedei imóvel, onde só havia paz e silêncio. Dei-me conta de que ali era você o infinito e deu-se o mesmo efeito. Cheguei a pensar que eu próprio me olhava, que o tempo era outro e nossas almas se agitavam, com os corpos em repouso. Foi um momento só meu, em que fui o próprio Hermes, congelado na calçada. Sonhei naquela noite que você despertava meus movimentos com um beijo suave. Mas até hoje não sei se era sonho. Isso me fez desejar que um dia meu infinito fosse o fundo dos seus olhos, lugar que não ousei ainda alcançar. Quase morro só em pensar quantas ilusões verei e de imaginar quanto tempo haveremos de resistir imóveis.

Um comentário:

  1. Márcio, como admiro sua palavra. Há anos, apesar de longo hiato, observo sua construção literária. Sua inteligência tem sido a base de tudo. Abraços. Márcio Varela

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