sábado, 30 de maio de 2020

Filha do Sol

Conceição Cruz
Cadeira n.º 4


Seu sangue tem laços no ontem, atravessou fronteiras, 
interiorizou-se aqui! Espraiou-se em Minas... 
Ausência do "mar"!
Espraiou! Ou! ou! Espraiá! Iaiá!

O sangue dos fortes serana-lhes as veias,
Cacheia-lhes os cabelo, bronzeia-lhe a pele,
Põe cadência na cintura e a faz sambar!
Espraiou! Ou! Ou! Espraiá! Sambar! Sambar!

À noite, faz calar a lua,
seus olhos negros perspassam os montes...
A natureza se encanta ao vê_la a caminhar!
Espraiou! Ou! Ou!  Espraiá! A caminhar!

É a Beleza Negra - Filha do Sol -
desenha nas montanhas de Minas as  curvas de seus corpos...
Do passado, faz história!
No ritmo de seu coração, traz o futuro a gingar!

Tal qual Minas: é Espírito de Pureza e de Bondade,
que tem ausência de "mar"...
Espraiou! Ou! Ou! Espraiá! A gingar!

É gente do Bem: sua Alma multicolorida tem 
ausência do "Mar"! Consciência Negra? 
Ou Consciência Humana? Ausência do "Mar"!  
Ausência do "Mar"! Ausência do "Mar"!  
Interiorizou-se aqui! Espraiou! Ou! Ou! Espraiá! Espraiá!
Dentro de mim! Dentro de nós! Ausência do "Mar"!

Oh! Dá licença minha gente!
De canaviais,  café,  engenhos e das filhas dos fazendeiros -
Sem cobrar nada em troca e sob a chibata -
Este povo guerreiro já cuidou! 
Espraiá! Espraiá! Vou contar!

Dá licença minha gente! Vamos abrir
 a roda do Tempo e da Verdade, com igualdade! Amar!
Se o Passado faz o Presente e se no Presente se faz o Futuro,
é hora de sair de cima do muro!

Espraiá! Espraiá! Espraiou! Ou! Ou! Espraiá! Espraiá!
Sangue dos Fortes! Igualdade! Amar!  
Liberdade! Amar! Direitos iguais! Amar! 
Seja noite, seja dia, Alegria a contagiar!
Homens e Mulheres! Amar! Amar! Amar! Amar! 
Amar! Amar! Amar! Amar! 
Beleza Negra! Amar! Pura beleza! Consciência Humana! 
Espraiá!Amar! Espraiá! Amar! 
 Amar! Amar! Amar! Amar!

terça-feira, 26 de maio de 2020

DIA A DIA...


Renata Teixeira da Silva
Cadeira n.º 3


E, então, Seu Divino saía,
ia às compras,
à casa do compadre e das filhas... 
Revia os netos,
contava uns causos,
recitava uns versos
(que, há muito, não se escutavam!)...
E, de repente,
Não pôde mais...
E sua janela pra vida
tornaram-se as redes sociais!
Achava estranho aquilo tudo!
Preferia o rádio, os jornais... 
É... os tempos são outros!
Há quem mostre muito
vivendo bem pouco;
há quem viva de tudo
e, no silêncio, esteja envolto...
Os que vivem para postar,
os que postam para viver... 

[Seu Divino, num suspiro profundo:]
"Ai!!! Tenho um pouco de preguiça deste mundo!"...
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Muita calma nesta hora!
Cada dia é um dia...
Em meio às tempestades,
Deus nos dá o abrigo:
há muitos "Tô nem aí!",
mas ainda há tantos
"Conta comigo!" 

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Imagem: http://soltaapipa.blogspot.com/2017/03/por-todos-os-joses-e-antonios-que-estao.html

sábado, 23 de maio de 2020

Quer que eu te conte um conto?

Carmélia Cândida
Cadeira n.º 2

VIAGEM

A acadêmica Carmélia Cândida conta uma história de sua autoria, no projeto Palco Virtual, da Secretaria de Cultura e Comunicação Institucional da Prefeitura Municipal de Pará de Minas. O projeto cede o espaço do Teatro Municipal Geraldina Campos de Almeida para que artistas da cidade possam gravar e veicular seus trabalhos. A escritora Carmélia é também uma conhecida atriz e contadora de histórias.




quarta-feira, 20 de maio de 2020

Significâncias

Márcio Simeone
Cadeira n.º 8



Cheio de sentidos, repleto de palavras,
sem muito a dizer, calado ou quase mudo,
em desvanecido e respeitoso silêncio.

Exuberante, em cores e brilhos,
desbotado pelo cansaço das luzes inúteis,
atento às artes indecifráveis.

Menor que um grão de poeira,
tão grande que planeje viajar para os fins da galáxia,
tão ínfimo que mal chegue ao satélite.

Pleno de vida que envie sinais por aí para ver se alguém - perto ou longe - responde,
abarrotado de respostas para o que nem mesmo se perguntou,
em dúvida do próprio existir.

Tão frágil que o pequeno ameace, tal como o gigante,
forte um tanto que desbrave os caminhos do sertão com sede e fome,
humilde e reverente frente à planta e à fonte.

Mistérios que há nos olhos de quem me aborda e que nunca irei decifrar.
Amor vivo nos olhos de alguém que, como eu, sempre amará.

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Imagem: https://www.publicdomainpictures.net/pictures/340000/velka/wassertropfen-universum-sterne.jpg (domínio público)

sábado, 16 de maio de 2020

Dona Zefa

Regina Marinho
Cadeira n.º 6

Vi quando a água escorreu por sua face, um jorro que desbordou dos olhos.
Neles estava toda a tristeza do mundo.
Ela suspirou e me disse: "pra essa gente, nós num serve pra nada! É trapo véio de pano de chão."
Dona Zefa, 87 anos, negra, pobre e lúcida, sabia que não haveria lugar pra gente como ela no socorro às vítimas da terrível pandemia.
Naquela hora, como respeitar isolamento físico, se jamais houvera isolamento algum entre nós duas?
Olhando fixamente em seus olhos, toquei suas mãos anciãs, com o desejo imenso de tocar também seu coração e mostrar a ele o indizível valor de sua vida para mim.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Jardim

Conceição Cruz
Cadeira n.º 4




No meu
jardim tem
margarida branca
a saudar os girassóis amarelos
em meio às folhas
gordas de babosa!

Tem abacaxis…
 Abacateiro pequenino
a crescer, a imitar
o seu irmão maior!

Tem cheirinhos diversos: manjericão,
salsa, romã, alecrim...

Tem mostarda, couve,
cebolinha…

Ah! Pimenta bem ardente
que quase ninguém aguenta!

Pela manhã,
as gotinhas de orvalho
brincam de escorregador
nas fortes folhas da taioba.

Mais tarde,
as joaninhas também pintam
por ali!

As borboletas enfeitam
a rama verde que deita raízes
bem longe
a trazer novos
e frescos morangos...
sempre assim!

As roseiras,
ali perto,
fazem buquês brancos,
vermelhos, amarelos e rosas
em oferta ao novo dia e
ao cantar do bem-te-vi!

No canto,
uma singela jabuticabeira,
de vez em quando,
fica toda coberta de branco
para depois vestir as suas frutas
com negro manto!

E as abelhas sapecas?
Cumprem a sua missão!
Chegam de mansinho
para provarem de tanto néctar
e fazem a polinização!


São tantas e tantas flores,
tantos cheiros e tantas 
cores...

Outro dia,
um passarinho me
contou tim tim por tim tim!

Até o arco-íris
fica deslumbrado
e diz aos mais
acabrunhados
que as flores
do meu apartamento,
cuidadas com muito
esmero e carinho
são tão belas,
mas tão belas,
quanto as flores de Monet
em seu esplêndido
e encantador

jardim!
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Imagem: Karen Arnold - https://www.publicdomainpictures.net/pt/view-image.php?image=83035&picture=flores-jardim-regador


sábado, 9 de maio de 2020

Flores para minha mãe

Carmélia Cândida
Cadeira n.º 2

Plantei flores para minha mãe. Usei um vaso que achei jogado entre o quiabeiro, na horta do quintal de sua casa, um pote de sorvete, um recipiente de amaciante de roupas, um de água sanitária e o outro foi um tamborzinho de tinta que já estava com terra e furos debaixo do pé de goiaba – talvez deixado por ela lá, anos atrás. Esquentando uma chave de fenda no queimador do fogão, fiz os furos nas floreiras improvisadas, depois de ter cortado com uma faca grande as que precisavam ser cortadas. Preenchi-as com terra da horta, molhei e acomodei as mudas que tinha tirado do meu jardim e de um canteiro na entrada da casa cultivado por meu pai. Procurei fazer como ela fazia. Ela amava flores e, desde que me lembro, cultivava-as como podia, em vasos, canteiros ou, por último, em dois jardins lindos que enfeitavam a casa onde ela e meu pai viviam. Coloquei os vasos dispostos em uma pilha de tijolos encostada ao muro, no quintal da casa dela.

Minha mãe não vai ver as flores que plantei para ela. Ela pode até vê-las. Eu posso colocá-la na cadeira de rodas e, com esforço, levá-la até a pilha de tijolos para ela ver os vasos. Mas não vai fazer diferença para ela. Ela já não reage mais ao ambiente. Mostra-se alheia e indiferente em grande parte do tempo. Enquanto ela conseguia reagir, o mínimo que fosse, nós a colocávamos na cadeira e saíamos com ela do quarto. Eu gostava de levá-la para a área da frente da casa, mostrar o canteiro que meu pai havia feito, com a grutinha de Nossa Senhora que ela havia comprado, a rua, o céu, um passarinho que passasse, dizer para ela sentir o vento... dar voltas com ela no passeio. Mas chegou o tempo em que ela passou a ficar olhando somente para o chão, com o corpo pendendo para um lado, quase caindo se não fosse a firmeza da cadeira e a gente consertando a posição dela o tempo todo, e indiferente. Quando não ficava assim, ficava chorando e nervosa. E o jeito era voltar com ela para a cama. Insisti várias vezes, até ver que não fazia mais sentido tirá-la de seu leito, que é bem mais confortável para ela.

Mas as flores estão lá. E são para ela. Mesmo que ela não possa admirá-las e ficar feliz com elas. Sei que o mais certo é fazermos pelas pessoas enquanto elas estão presentes entre nós. Que pouco adianta demonstrar afeto ou dizer que nos importamos (isso se faz muito mais com atitudes do que com palavras) depois que a pessoa já não está conosco, em parte ou definitivamente. E disso devemos nos lembrar sempre, sempre.

Então me pergunto se isso tem mesmo sentido. Se outras pessoas têm atitudes parecidas com essa minha. Fazer algo por alguém depois que esse alguém já se foi, ou, no caso da minha mãe, depois do que o que ela era já se foi...

Aí uma voz que é a minha mesmo me diz que sim, que há sentido em continuar fazendo por quem amamos mesmo que esse alguém não esteja mais conosco ou mesmo que esse alguém não esteja presente o suficiente para ver ou sentir o que fazemos por ele. Talvez porque não queremos nos desligar totalmente de quem amamos. Talvez porque essa seja uma forma de manter vivo o amor, a memória, de sentirmos que a pessoa continua conosco como antes, mesmo que já tenhamos entendido que é preciso desapegar dela materialmente e aceitar sua ida. Ou será que é porque o amor transcende nosso existir?

Não sei... Sei que as flores estão lá e que, quando eu olhar para elas, sentirei um pouco da minha mãe comigo, ou... sentirei a minha mãe existindo por meio de mim (talvez seja isso!). E poderei vislumbrar o sorriso dela, olhando para aqueles vasos singelos, e me sentirei feliz. Tenho certeza de que, se eu estiver feliz, ela estará feliz também. E por certo que, enquanto eu a amar – e isso será para sempre – ela viverá em mim.


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Para que servem as mães

Malluh Praxedes
Cadeira n.º 19


Talvez a lembrança mais remota que eu tenha de minha mãe seja de uma tarde de sol pouco, quando ela me calçou um sapato de verniz preto para ir visitar sua mãe, a vovó Cota.

Tia Marta ainda era freira e fomos as três rua Direita à fora, até a Rua São José onde ficava a sua casa de janelas largas de madeira e porta com chave gigante. Sentei-me com certa dificuldade na cadeira de balanço  da vovó e mamãe me pediu: - Não fique aí, filha, essa cadeira é da sua avó! Quis sair, mas vovó falou: - Deixa, Noêmia, ela está tão feliz aí!

Só me lembro disso e esse dia é também a única lembrança que tenho de minha avó. Devo ter pegado no sono, entre um balanço e outro, que vi a vovó me embalando com um dos pés, vagamente...

Depois me lembro de uma tarde em que Maria Marta cortou meus longos cabelos cacheados que ficavam presos constantemente em um rabo de cavalo que rodeava em torno de si mesmo. Mamãe chegou em casa e nos pegou de surpresa. Maria Marta havia cortado meus cabelos de um jeito que copiou de uma capa de revista e me convenceu que não precisaria mais sofrer com escovas e pentes. Mamãe ficou apavorada: - Maria Marta, como é que você faz isso? O cabelo dela tem cachos demais, será difícil de cuidar! Com rabo de cavalo é bem mais fácil... Fiquei triste. Estava feliz naquela hora, mas mamãe se esqueceu de me elogiar.

Mas manhãs seguintes vieram e passei a sair com mamãe. Ela visitava pobres em suas ruelas e vilas e deixava-me descobrir aquele mundo triste e por vezes tão desfalcado de pertences. Até o fogão me impressionava: quase nunca havia panelas com comidas. Lembro-me de voltar pra casa com o coração apertado e mamãe ir me consolando: - Viu, filha, como devemos dar valor ao que temos? Não podemos desperdiçar comida. É preciso pensar que o que não nos serve mais pode ser útil a quem passa necessidade... Eu gostava de ouvir aquilo e me encantava com a inteligência de mamãe.

Foi uma das fundadoras da Sopa dos Pobres e toda terça-feira era dia de subirmos a longa rua que nos deixava ao lado da Igreja Nossa Senhora das Graças... Caminho que demorava mais ainda, já que mamãe era parada constantemente por amigos de uma vida inteira: as pessoas a elogiavam e aproveitavam para dar alguma coisa para os pobres. Se tivesse que carregar sacos de farinha, café, açúcar, mamãe nem reclamava. Sua felicidade era tamanha que nem via a distância entre nossa casa e o destino final.

Chegando na Sopa, mamãe ia diretamente para a cozinha acompanhar as cozinheiras preparando o ‘jantar’ daquele dia. Lembro-me das sopas de fubá com couve e por vezes uma carne desfiada. Se ganhasse pão, o pão acompanharia a refeição daquele dia.

As mesas eram enormes, pintadas de azul claro com bancos dos dois lados. Talvez umas 50 pessoas tivessem a oportunidade de se alimentar naquela tarde. E mamãe ficava visitando as mesas e perguntando pela vida de cada um. As pessoas nem percebiam que eu, filha miúda da dona Noêmia estava ali por perto. Nem se importavam comigo, mas eu achava muito bom ser filha de uma mãe  tão caridosa e gentil.

À noite, já em casa via mamãe contando para o papai as novidades daqueles pobres. Papai sugeria algumas coisas que não me recordo bem. Sei que falavam em Juiz de Direito ou Juiz de Paz. Nos dias seguintes não era raro mamãe ir ao Fórum e procurar aqueles homens que sabiam de leis e direitos humanos.

Foi assim que vi mamãe organizar um almoço aos domingos para os presos. Os vizinhos entregavam marmitas em nossa casa e papai pegava o carro, enchia de marmitas e mamãe - e eu muitas vezes eu – ia até a cadeia levar comida para os presos. Tinha até sobremesa que mamãe comprava – cocada ou pé de moleque. Papai doava maços de cigarro – em média um para cada preso. Era dia de festa na cadeia.

Naqueles dias os presos não eram traficantes, nem pedófilos, muito menos homens que matavam suas mulheres. Eram ladrões de galinha – como eram chamados aqueles que roubavam para comer -, assassinos que mataram para vingar, coisas desse tipo.

Algumas tardes mamãe chamava seus sobrinhos músicos e músicos profissionais para tocar alguma coisa para aqueles infelizes. Eu ia junto. Ficava emocionada, imaginando que eu voltaria para casa, talvez para tomar um sorvete, comer pipoca, uma espiga de milho. Eles não. Ficariam com a música na cabeça e o máximo que poderiam fazer era deitar naqueles beliches estreitos e ficar pensando na vida.

E foi pensando na vida que aquela menina com alegria e orgulho segurou na mão de sua mãe e agradeceu a Deus, sei lá de que forma, por ter uma vida livre, leve e solta.
Abril de 2016