Carmélia Cândida
Cadeira n.º 2
Plantei flores para
minha mãe. Usei um vaso que achei jogado entre o quiabeiro, na horta
do quintal de sua casa, um pote de sorvete, um recipiente de
amaciante de roupas, um de água sanitária e o outro foi um
tamborzinho de tinta que já estava com terra e furos debaixo do pé
de goiaba – talvez deixado por ela lá, anos atrás. Esquentando
uma chave de fenda no queimador do fogão, fiz os furos nas floreiras
improvisadas, depois de ter cortado com uma faca grande as que
precisavam ser cortadas. Preenchi-as com terra da horta, molhei e
acomodei as mudas que tinha tirado do meu jardim e de um canteiro na
entrada da casa cultivado por meu pai. Procurei fazer como ela fazia.
Ela amava flores e, desde que me lembro, cultivava-as como podia, em
vasos, canteiros ou, por último, em dois jardins lindos que
enfeitavam a casa onde ela e meu pai viviam. Coloquei os vasos
dispostos em uma pilha de tijolos encostada ao muro, no quintal da
casa dela.
Minha mãe não vai ver
as flores que plantei para ela. Ela pode até vê-las. Eu posso
colocá-la na cadeira de rodas e, com esforço, levá-la até a pilha
de tijolos para ela ver os vasos. Mas não vai fazer diferença para
ela. Ela já não reage mais ao ambiente. Mostra-se alheia e
indiferente em grande parte do tempo. Enquanto ela conseguia reagir,
o mínimo que fosse, nós a colocávamos na cadeira e saíamos com
ela do quarto. Eu gostava de levá-la para a área da frente da casa,
mostrar o canteiro que meu pai havia feito, com a grutinha de Nossa
Senhora que ela havia comprado, a rua, o céu, um passarinho que
passasse, dizer para ela sentir o vento... dar voltas com ela no
passeio. Mas chegou o tempo em que ela passou a ficar olhando somente
para o chão, com o corpo pendendo para um lado, quase caindo se não
fosse a firmeza da cadeira e a gente
consertando a posição dela o tempo todo, e indiferente. Quando não
ficava assim, ficava chorando e nervosa. E o jeito era voltar com ela
para a cama. Insisti várias vezes, até ver que não fazia mais
sentido tirá-la de seu leito, que é bem mais confortável para ela.
Mas as flores estão
lá. E são para ela. Mesmo que ela não possa admirá-las e ficar
feliz com elas. Sei que o mais certo é fazermos pelas pessoas
enquanto elas estão presentes entre nós. Que pouco adianta
demonstrar afeto ou dizer que nos importamos (isso se faz muito mais
com atitudes do que com palavras) depois que a pessoa já não está
conosco, em parte ou definitivamente. E disso devemos nos lembrar
sempre, sempre.
Então me pergunto se
isso tem mesmo sentido. Se outras pessoas têm atitudes parecidas com
essa minha. Fazer algo por alguém depois que esse alguém já se
foi, ou, no caso da minha mãe, depois do que o que ela era já se
foi...
Aí uma voz que é a
minha mesmo me diz que sim, que há sentido em continuar fazendo por
quem amamos mesmo que esse alguém não esteja mais conosco ou mesmo
que esse alguém não esteja presente o suficiente para ver ou sentir
o que fazemos por ele. Talvez porque não queremos nos desligar
totalmente de quem amamos. Talvez porque essa seja uma forma de
manter vivo o amor, a memória, de sentirmos que a pessoa continua
conosco como antes, mesmo que já tenhamos entendido que é preciso
desapegar dela materialmente e aceitar sua ida. Ou será que é
porque o amor transcende nosso existir?
Não sei... Sei que as
flores estão lá e que, quando eu olhar para elas, sentirei um pouco
da minha mãe comigo, ou... sentirei a minha mãe existindo por meio
de mim (talvez seja isso!). E poderei vislumbrar o sorriso dela,
olhando para aqueles vasos singelos, e me sentirei feliz. Tenho
certeza de que, se eu estiver feliz, ela estará feliz também. E por
certo que, enquanto eu a amar – e isso será para sempre – ela
viverá em mim.
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Verdade, Carmélia! O amor eterniza as pessoas amadas em nós. Bjs, Regina Maria.
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