sábado, 9 de maio de 2020

Para que servem as mães

Malluh Praxedes
Cadeira n.º 19


Talvez a lembrança mais remota que eu tenha de minha mãe seja de uma tarde de sol pouco, quando ela me calçou um sapato de verniz preto para ir visitar sua mãe, a vovó Cota.

Tia Marta ainda era freira e fomos as três rua Direita à fora, até a Rua São José onde ficava a sua casa de janelas largas de madeira e porta com chave gigante. Sentei-me com certa dificuldade na cadeira de balanço  da vovó e mamãe me pediu: - Não fique aí, filha, essa cadeira é da sua avó! Quis sair, mas vovó falou: - Deixa, Noêmia, ela está tão feliz aí!

Só me lembro disso e esse dia é também a única lembrança que tenho de minha avó. Devo ter pegado no sono, entre um balanço e outro, que vi a vovó me embalando com um dos pés, vagamente...

Depois me lembro de uma tarde em que Maria Marta cortou meus longos cabelos cacheados que ficavam presos constantemente em um rabo de cavalo que rodeava em torno de si mesmo. Mamãe chegou em casa e nos pegou de surpresa. Maria Marta havia cortado meus cabelos de um jeito que copiou de uma capa de revista e me convenceu que não precisaria mais sofrer com escovas e pentes. Mamãe ficou apavorada: - Maria Marta, como é que você faz isso? O cabelo dela tem cachos demais, será difícil de cuidar! Com rabo de cavalo é bem mais fácil... Fiquei triste. Estava feliz naquela hora, mas mamãe se esqueceu de me elogiar.

Mas manhãs seguintes vieram e passei a sair com mamãe. Ela visitava pobres em suas ruelas e vilas e deixava-me descobrir aquele mundo triste e por vezes tão desfalcado de pertences. Até o fogão me impressionava: quase nunca havia panelas com comidas. Lembro-me de voltar pra casa com o coração apertado e mamãe ir me consolando: - Viu, filha, como devemos dar valor ao que temos? Não podemos desperdiçar comida. É preciso pensar que o que não nos serve mais pode ser útil a quem passa necessidade... Eu gostava de ouvir aquilo e me encantava com a inteligência de mamãe.

Foi uma das fundadoras da Sopa dos Pobres e toda terça-feira era dia de subirmos a longa rua que nos deixava ao lado da Igreja Nossa Senhora das Graças... Caminho que demorava mais ainda, já que mamãe era parada constantemente por amigos de uma vida inteira: as pessoas a elogiavam e aproveitavam para dar alguma coisa para os pobres. Se tivesse que carregar sacos de farinha, café, açúcar, mamãe nem reclamava. Sua felicidade era tamanha que nem via a distância entre nossa casa e o destino final.

Chegando na Sopa, mamãe ia diretamente para a cozinha acompanhar as cozinheiras preparando o ‘jantar’ daquele dia. Lembro-me das sopas de fubá com couve e por vezes uma carne desfiada. Se ganhasse pão, o pão acompanharia a refeição daquele dia.

As mesas eram enormes, pintadas de azul claro com bancos dos dois lados. Talvez umas 50 pessoas tivessem a oportunidade de se alimentar naquela tarde. E mamãe ficava visitando as mesas e perguntando pela vida de cada um. As pessoas nem percebiam que eu, filha miúda da dona Noêmia estava ali por perto. Nem se importavam comigo, mas eu achava muito bom ser filha de uma mãe  tão caridosa e gentil.

À noite, já em casa via mamãe contando para o papai as novidades daqueles pobres. Papai sugeria algumas coisas que não me recordo bem. Sei que falavam em Juiz de Direito ou Juiz de Paz. Nos dias seguintes não era raro mamãe ir ao Fórum e procurar aqueles homens que sabiam de leis e direitos humanos.

Foi assim que vi mamãe organizar um almoço aos domingos para os presos. Os vizinhos entregavam marmitas em nossa casa e papai pegava o carro, enchia de marmitas e mamãe - e eu muitas vezes eu – ia até a cadeia levar comida para os presos. Tinha até sobremesa que mamãe comprava – cocada ou pé de moleque. Papai doava maços de cigarro – em média um para cada preso. Era dia de festa na cadeia.

Naqueles dias os presos não eram traficantes, nem pedófilos, muito menos homens que matavam suas mulheres. Eram ladrões de galinha – como eram chamados aqueles que roubavam para comer -, assassinos que mataram para vingar, coisas desse tipo.

Algumas tardes mamãe chamava seus sobrinhos músicos e músicos profissionais para tocar alguma coisa para aqueles infelizes. Eu ia junto. Ficava emocionada, imaginando que eu voltaria para casa, talvez para tomar um sorvete, comer pipoca, uma espiga de milho. Eles não. Ficariam com a música na cabeça e o máximo que poderiam fazer era deitar naqueles beliches estreitos e ficar pensando na vida.

E foi pensando na vida que aquela menina com alegria e orgulho segurou na mão de sua mãe e agradeceu a Deus, sei lá de que forma, por ter uma vida livre, leve e solta.
Abril de 2016



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