27 de agosto de 2025

O construtor de pontes e a negação da obediência cega

Regina Marinho
Cadeira n.º 6


27 de agosto - 26 anos do falecimento de Dom Hélder Câmara


Lendo trechos de uma conversa datada de 8 de abril de 1946 entre Leon Goldensohn, médico e psiquiatra, e Rudolf Höss (ou Hoess), prisioneiro de guerra e ex-comandante de Auschwitz, impressionou-me a resposta dada por Höss como justificativa para os atos praticados naquele campo de extermínio. Disse ele a Goldensohn: “...quando Himmler nos dizia algo, era tão correto e natural que obedecíamos cegamente.” Heinrich Himmler[1], superior hierárquico de Höss, é considerado o idealizador da chamada solução final para a questão judaica. Ele dizia que, se os alemães não exterminassem os judeus naquele momento, logo seriam eles os exterminados pelos judeus. Essa argumentação bastava para que seu subordinado, responsável pelo programa de extermínio em Auschwitz, cumprisse suas ordens sem questionar.

A obediência cega de Höss lembrou-me algo presenciado pelo João em 1980 ou 1981. Estávamos sob o governo do último presidente da República do período militar[2]. Na época, João e eu éramos namorados. Ele estava na escola de engenharia da UFMG, onde estudava, quando viu um cartaz chamando para um encontro com Dom Hélder Câmara[3] na Universidade Católica de Minas Gerais, atual PUC-Minas. Seria a oportunidade de conhecer aquele grande arcebispo, pequeno só na estatura, amado por muitos e odiado por outros tantos.

E foi-se o João, pegar o ônibus que o levaria até o Coração Eucarístico, ansioso por escutar Dom Hélder no auditório, conforme anunciado no cartaz. Lá chegando, para sua surpresa e estranhamento, cadê Dom Hélder? Não estava no auditório. Corre daqui, corre dali, João percebe uma movimentação de gente. Era um grupo de pessoas conduzindo o arcebispo para algum lugar improvisado, aonde ele pudesse falar. Ficara evidente que se tratava de um evento organizado apenas por integrantes do Diretório Acadêmico, sem o apoio da instituição.

Encaminharam-se todos para um dos amplos corredores do prédio mais antigo e ali se instalaram, o pontífice ao centro, ladeado por alunos e alguns admiradores. O assunto não podia deixar de ser outro senão a realidade sociopolítica do Brasil. E por conhecê-la bem, Dom Hélder denunciava, corajosamente, as arbitrariedades do regime militar: violação recorrente dos direitos humanos, perseguição política a opositores, cerceamento da liberdade de expressão de estudantes, professores, jornalistas, artistas, religiosos etc.

Bem se diz que profeta é quem denuncia, mas também anuncia. Depois da denúncia, o anúncio solene: “Ninguém deve obediência cega a ninguém!”. Imediatamente, um estudante interpela o arcebispo: “Mas, senhor, nem a Deus?!”. A resposta vem categórica: “Nem a Deus!”. Silêncio e espanto…ouvintes surpresos e suspensos, aguardando uma explicação convincente para aquela declaração inesperada, saída da boca de um sacerdote. E ele conclui: “Deus não quer obediência cega de ninguém!”

Para Dom Hélder, se Deus exigisse de nós a obediência cega estaria impedindo o exercício de nossa liberdade, dom que nos concedeu. E como exemplo de uma obediência consciente, falou da atitude de Maria, que escutou o anúncio do anjo, mas perguntou como tudo aconteceria, antes de aceitar sua missão.

Isso me lembra a etimologia do verbo obedecer, que vem do latim, OB + AUDIRE, e significa “escutar com atenção”. Obedecer não significa atender a uma ordem de forma irrefletida, como muitos de nós podem pensar. Pelo contrário, é atitude que requer uma escuta atenta como pressuposto para uma livre e consciente adesão. Ao citar a obediência de Maria, como exemplo para nós, Dom Hélder traz exatamente esse sentido original do termo.

De minha parte, penso na obediência cega como negação do amor de Deus. Não havendo liberdade para escutar, questionar, discernir, decidir, agir/reagir e de responder (responsabilizar-se) por suas escolhas, o ser humano jamais poderia expressar em si a imagem e a semelhança de seu criador. Devotar obediência cega a Deus não é um gesto de confiança nele, mas uma incompreensão de sua vontade. Se cremos que Deus é Amor, como diz o apóstolo João em sua primeira carta (1 Jo 4, 8), a obediência a ele só pode nascer da livre vontade do ser amado.

Jamais tive o prazer de ver e ouvir Dom Hélder em carne, osso e espírito, mas sei de seus ensinamentos por meio de livros, vídeos, áudios e fotografias. Eles me apresentaram um ser humano íntegro, ético, de voz firme, discurso claro e gestos vigorosos. Lembro-me da forte impressão que este encontro com Dom Hélder causou no João. Ele ficara deverasmente extasiado com o que viu e ouviu e me deixara deverasmente penalizada por não ter tido essa oportunidade.

Em 2015, o Dicastério para a Causa dos Santos da Santa Sé emitiu parecer favorável para o início do processo de beatificação e canonização de Dom Hélder, conferindo-lhe o título de “Servo de Deus”, como é de praxe. No entanto, ao longo de sua vida, ele recebeu outros tantos títulos. Foi chamado de “Irmão dos pobres”, de “O Dom da paz” - indicado ao Nobel da paz por mais de uma vez, não conquistou o prêmio por intervenção de militares - e também de “Bispo Vermelho”. Este último lhe foi conferido por políticos e militares descontentes com sua atuação incansável na defesa dos direitos humanos, dentro e fora do país. Para estes, seguir o evangelho como Cristo propõe é se declarar comunista.

Hoje se sabe que Dom Hélder fora proibido, pelos sucessivos governos militares, até mesmo de frequentar as universidades brasileiras. Por isso, talvez, o encontro com os alunos na Católica não tivera o apoio da instituição. Era uma forma de tentar calar sua voz que nunca se calou e que reverbera ainda hoje pelas vozes de muitos outros.

Para mim, Dom Hélder é fonte de inspiração em tempos de tanta confusão e distorção dos valores humanos, inclusive por parte de religiosos e leigos cristãos. O termo pontífice, uma distinção conferida a bispos, arcebispos e cardeais, significa “Construtor de pontes” e é como eu chamaria aquele que construiu pontes por sobre muros e trincheiras. O mandamento de Cristo, “amai-vos como eu vos amei”, era a sua medida, e ele sabia que o caminho do amor só pode ser trilhado na liberdade, assim como dizia Agostinho de Hipona: “ama e faze o que quiseres!”



[1] Heinrich Himmler – 1900-1945 - líder nazista alemão sob a autoridade apenas de Hitler, comandante das forças de elite (SS) e da polícia secreta (Gestapo), coordenador das operações dos campos de concentração/extermínio e responsável pela execução de milhões de prisioneiros.

[2] João Batista de Oliveira Figueiredo – 1918-1999 - militar e político brasileiro, o 30.º presidente do Brasil (1979 a 1985) e o último presidente do período da ditadura militar.

[3] Dom Hélder Pessoa Câmara OFS – 1909-1999 - arcebispo emérito de Olinda e do Recife, fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) e das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs).


Um comentário:

  1. Regina, ótimo texto. Precisamos de mais Dom Helders e de mais Padre Júlio Lancellottis: vozes firmes que denunciem a hipocrisia sem temer o julgamento da sociedade, movidas pelo genuíno espírito de quem verdadeiramente ama seu rebanho.

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