domingo, 26 de fevereiro de 2012


O ponto, ponto por ponto
 Terezinha Pereira

Dia desses, a sobrinha Ana Luísa, logo ao me encontrar, disse que tinha uma coisa para me mostrar. Tirou da bolsa uma bobina de calculadora, foi desenrolando o papel e lendo o que estava  escrito.
“Minha querida Ana Luísa Pão de Queijo de Minas. Oi, minha linda! Gostei de receber sua primeira carta. Aguardo outras. Gostei do papel enroladinho. Para lhe responder, escolhi este, é  quase igual ao seu.”
 Eu escutava o que Ana dizia como algo conhecido, porém, distante. “Você me falou de carta enigmática. O que é uma carta enigmática? Uma carta cheia de enigmas? Ou uma carta com um só enigma? Mistério... Então, veio com a piadinha: o ponto final é o asterisco usando gel. Sabia que o asterisco é um ponto descabelado? É. Tem cara.”
            Quando desconfiei que era uma carta que eu havia lhe escrito que Ana estava lendo, já era no final do texto.  Pudera. A data é de três de janeiro de 2006! A menina, hoje aos doze anos, naquela época, estava com oito.
Vou contar aqui o que escrevi a ela, na brincadeira, sobre o ponto e suas aplicações (ou implicações?). Pode ser que, em algum ponto, eu aumente algum ponto, pois quem conta... quem lê... corre o risco de fazê-lo. Dizem.
“Há ponto e pontos. Lembra do ponto de ônibus? Do ponto de vendas de qualquer coisa. Do ponto de táxi. Tem gente que faz ponto. No ponto.
Ponto final. Ponto-e-vírgula; três pontos das reticências... Ponto de interrogação? Ponto de exclamação!  !!!!!
O ponto que você faz no bingo... ou em qualquer outro jogo. O ponto alvo. O ponto na escala musical.  O ponto que você faz na prova. O ponto que acerta. Se erra o ponto, você fica a ponto de... Ou chega ao ponto de ...
Ponto fraco. Ponto de apoio. Ponto de honra.  Ponto pacífico. Ponto de controvérsia. Ponto cardeal! Ponto cego (este nem precisa de óculos). Ponto de referência. Ponto de vista. Ponto de discussão. E o ponto de luz no céu?
O ponto culminante da história. Al! Este é o ponto máximo! Ou o ponto alto? Montanhas, cordilheiras, países também têm ponto culminante.
Ah, menina! Quando estiver estudando Física, Geometria, Astronomia, Matemática, etc., vai ter que se cuidar pra não trocar os pontos. Ponto de ebulição. Conhece este? Que fervura! Ponto de congelação. Á água fica dura. E lá vem mais pontos cujo significado vai precisar conhecer: de cristalização, de fluidez, de fusão, de ignição, de orvalho, de transição, de universo, no contínuo espaço-tempo, de vaporização, fixo, de impacto, gama, ventral, impróprio, infinito, interior, inverso, isoelétrico, isolado, material, de Libra, de equilíbrio, solsticial, de fulgor, de impacto, de inflexão, de sela, de sutura, estacionário, inverso, ideal. Muitos destes também são usados para significar pontos figurados, metafóricos, não é mesmo? 
Sabe do ponto de bala? Do ponto da massa do pão de queijo? Do bife ao ponto. E do ponto da agulha? Ponto do tricô. Ponto do crochê... O ponto de Paris não fica na França. É ponto de bordado. E tantos são os pontos de bordado: de nó, de meia, de laço, de cadeia, de sombra, de bainha, aberto, fechado, alto, baixo, de cruz, cheio, de canutilho, de espinha, russo, de festonê, atrás. Pontos.
Quem trabalha numa empresa qualquer, conhece livro, cartão, folha, registro  de ponto. Sabe o que é assinar o ponto, bater o ponto, digitar o ponto. Funcionário público adora o ponto facultativo. Pessoa interesseira não dá ponto sem nó. Todo mundo está de acordo em relação a este ponto.
No teatro, aquele que fica escondido para ajudar ao artista a lembrar sua fala é chamado de ponto. Quando se usa o rádio para essa função, é chamado de ponto eletrônico. A propósito, você já dormiu no ponto? Já entregou os pontos? Em que ponto está sua pesquisa?
Na pintura, um ponto é uma pequena mancha de cor. O ponto é o início de tudo. Um simples toque da ponta* do lápis no papel forma um ponto. Pontos unidos formam uma linha. Um ponto em movimento forma uma linha. Epa! Haja pontos. *Ponta não é feminino de ponto. É extremidade. Ponto em que alguma coisa começa ou termina.
Embora não tendo discursado sobre todos os pontos, até certo ponto, creio haver-lhe falado do ponto, ponto por ponto. E que não tenha deixado ficar pra trás algum ponto enigmático. Ponho um ponto final nesta carta. Um ponto sem gel, que não era asterisco. Assunto encerrado.      
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Beijos mil. TT
Lembrete: são 22 horas. Em ponto.
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Felicidade

                                                                                                                         
Ela se chama Das Dores.

Na verdade Das Dores é como as pessoas a chamam, não sei se é nome, sobrenome ou apelido.

Está agora debruçada na pia enxaguando os pratos e talheres do almoço.

É noite.

Hoje é sexta-feira. Jorge vai chegar daqui a pouco e ela está muito feliz.

Das Dores está feliz todos os dias, eu não consigo entender por quê.

Sua casa é pequena e simples. Não tem máquina de lavar, mas o Jorge disse que vai comprar uma das grandes para ela, assim que ele terminar de pagar a televisão. Ela disse a ele não precisa, Jorge, aqui é pouca roupa, eu dou conta, mas o Jorge insistiu e ela disse tudo bem, então.

E sorriu.

Das Dores sorri muito.

Lava os pratos e talheres sorrindo.

A água sai pouca da torneira, porque eles moram no alto de um morro e a pressão é fraca, não tem jeito.

Das Dores é jovem, não tem nem trinta anos, mas parece que tem mais. Peitos caídos, cabelo ensebado, pele encardida, está um pouco acima do peso, mas quando ela se olha no espelho do guarda-roupa, acha-se bonita. Jorge gosta. Até elogia.

Toda sexta-feira ela prepara um jantar especial para ela e o Jorge. Ele traz um vinho tinto suave, docinho, do jeito que ela gosta. Semana passada ele comprou duas taças no supermercado e fez uma surpresa para ela: encheu-as de vinho e foi até o quarto, enquanto ela se penteava, levando também, além do vinho, um prato com petiscos (salsicha, queijo e azeitona). Ela disse que loucura, Jorge, você gastou dinheiro com esses copos chiques, não precisava, mas o Jorge nem ligou. Foi logo beijando a sua boca, e os dois se jogaram na cama.

Toda sexta-feira eles fazem amor. É muito bom, ela gosta do Jorge, ele é carinhoso e fala que ela é bonita. Nunca foram a um motel, mas o Jorge disse que um dia vai levá-la, e ela fica imaginando como deve ser.

Ela está agora preparando a lasanha para o jantar. É o prato que o Jorge mais gosta, e ela também.

Hoje ela decidiu colocar um pouco mais de presunto na lasanha (na verdade, não é presunto, mas algo parecido, mais barato. Só que, para ela, é tudo a mesma coisa, então ela prefere chamar de presunto, que é uma palavra mais bonita. Presuuunnnto, ela gosta de dizer baixinho, sorrindo, quando volta para casa com as compras).

O molho está ótimo, ela pensa, enquanto prepara a lasanha ouvindo “A Hora do Brasil”.

Daqui a pouco o Jorge chega e os dois vão tomar banho.

Ela ensaboa o Jorge toda sexta-feira, para tirar o cheiro que fica grudado na pele dele.

É que o Jorge trabalha no serviço de limpeza urbana, recolhendo os lixos das casas.

Jorge também é jovem, tem trinta e um anos, mas gosta de se cuidar, por isso parece ser mais novo do que Das Dores, que é um pouco desleixada.

Ele é musculoso de tanto levantar sacos de lixo e correr atrás do caminhão da limpeza pela cidade, mas seu cheiro não é bom, por isso ela faz questão de ensaboá-lo na sexta-feira e de passar bastante loção no seu corpo, porque é o dia deles jantarem juntos e fazerem amor.

Ela prefere “fazer amor”, não gosta das palavras que o Jorge usa quando estão na cama, vou te comer, vamos trepar, coisas assim, de animal.

Das Dores não entende nada do que ela ouve na “Hora do Brasil”.

Não sabe dos gastos milionários do Governo com estádios de futebol, enquanto os professores estão em greve.

Das Dores nem pensa no seu trabalho, que recomeça segunda-feira, pregando solas de sapatos, milhares de solas, nada além de solas, solas, solas e mais solas, o dia inteiro, até o crepúsculo.

Ela gosta da palavra crepúsculo.

Ela leu isso em algum lugar e sua amiga Josefa lhe explicou o que era: Pôr-do-sol.

Ficou boba. 

Depois disso, ao sair da fábrica de sapatos, ela trocou seu trajeto só para passar por uma rua que lhe permitia ver o pôr-do-sol.

E ela parava e admirava...

Ela gosta das cores do crepúsculo.

Ela está agora olhando pela janela.

Noite estrelada, muito calor.

Escuta alguns tiros lá embaixo, mas nem liga.

Não pensa em nada, vive o instante.

Das Dores estudou na escola pública do bairro, aprendeu a ler, mas não entende quase nada do que lê, somente avisos bem simples como Cuidado: chão molhado, Caixa fechado, Seja bem-vindo à Casa do Senhor, etc. Uma vez tentou ler o resumo de uma novela, mas só entendeu algumas palavras isoladas, que ela guardou na memória: luxo, praia, motel, patife, vagabunda, aborto, drogas.  

Jorge estudou mais tempo que Das Dores, em uma escola pública melhor. Jorge até pega livro na Biblioteca. Das Dores fica impressionada com a inteligência do Jorge. Ele é esperto, sabe das coisas.

Jorge tem até uma caixa de papelão onde guarda os livros que ele encontra no lixo, a maioria com um título que Das Dores acha muito estranho: Tex. O cheiro dos livros é que não é bom, mas Das Dores nem liga, porque ela adora ver o Jorge feliz, e quando ele pega um desses livrinhos para ler, ele parece muito feliz.

Jorge chega com o vinho.

E a surpresa da noite é que o vinho não é de uva, mas de pêssego, fruta que Das Dores nunca experimentou.

Das Dores sorri e abraça Jorge com carinho. O cheiro dele não está nada bom.

Tomam banho, fazem amor e Das Dores, com uma taça de vinho de pêssego na mão, coloca a lasanha para assar.

(Na verdade não é bem um vinho, mas para Das Dores isso não importa).

Jorge liga o rádio e fica olhando as luzes do morro pela janela.

Outro tiro.

Ele se assusta, vira para Das Dores e os dois começam a rir.

Você está tão bonita hoje, Das Dores, ele diz.

Você também, Jorge.

Acho que já entendi por que Das Dores está feliz todos os dias.

Flávio Marcus da Silva - da ALPM, cadeira n. 01

As flores de folhas secas

Geraldo Fonte Boa

A desesperança intala-se
sobre as pétalas de flores de folhas secas
Do fim eminente que se aproxima
tornas os espinhos agudos,
escuros, tenebrosos
 

                                  Pouco a pouco perde o perfume,
                                  a seiva não se renova
                                  ficará apenas lembranças
                                  de um tempo vivido
                                  de um história contada
                                  de uma jura de amor
                                  eterno
Flores de folhas secas
em juras de amor eterno
que com o tempo se esvai
desesperança…