Terezinha Pereira
As lembranças não são muitas. Você
sabe. O tempo costuma levar consigo fatos e boatos. A festa da vingança contra
Judas era realizada aos Sábados de Aleluia. Havia de ser no dia seguinte ao da
morte de Jesus. Ainda bem que muita coisa fica escrita.
Judas Iscariotes. Ele havia traído
Jesus em troco de 30 moedas. De prata. E
ele havia sido um dos 12 seguidores do
Mestre. Conhecia-O bem. Mesmo assim, apontara-O a Seus algozes. “Aquele é o
homem que vocês procuram.” Nos evangelhos, Mateus (10:2-4), Marcos (3:16-19) e Lucas
(6:13-16) atestam a traição.
Mateus também fala do remorso, do
destino das 30 moedas e do suicídio de Judas. O que restou a ele, como delator.
“Judas ficou cheio de remorsos...: trouxe de novo as trinta moedas de prata aos
chefes dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: 'Pequei ao entregar à morte um
inocente.' Eles replicaram: 'Que nos interessa isso? O problema é teu.'
Lançando então por terra as moedas de prata, ele retirou-se e foi
enforcar-se." ( 27, 3-5)
O homem não quis ser perdoado pelo
Mestre........ Não lhe deu o tempo. Se ele mesmo se dispôs a receber o
castigo... Para os cristãos, em grande parte deste vasto mundo, em terras de
origem latina, seguem-se mais de 2.000 anos de vingança. Malhar, enforcar,
queimar o Judas.
Minhas poucas lembranças da queima
de Judas estão na infância. Da época que ele ainda não ganhava a máscara do
político da hora. No Sábado de Aleluia, a mãe servia o café da manhã e já preparava
o almoço, pois em breve não podia mais conter as crianças. Pelas 10, saíam com
um boneco de pano, tamanho de um homem, na carroceria de uma caminhonete (?). O
Judas. Meninada e gente grande seguiam
atrás. Aleluia! O cortejo percorria as
ruas principais da cidade até chegar à Praça da Independência, o palco de todos
os anos. Acho que havia banda de música e muito foguete. Quando eu chegava à Praça
da Independência, esta já estava lotada. Em pleno meio do dia, fazia um calorão
danado. Eu torcia para que o vendedor de picolé passasse logo. Nesses dias, cada
menino da casa ganhava uns trocados para o picolé. Os que haviam vendido velas
para a procissão da Sexta-Feira da Paixão podiam comprar dois.
Ao meio dia em ponto começava a
leitura do testamento do Judas. Momento solene. As pessoas, a banda, os foguetes,
tudo em silêncio. Um
orador, será que ficava em cima da mesma caminhonete do Judas?... O orador
mostrava uma papelada. Todos aplaudiam. E ele começava a leitura. A curiosidade
tomava conta do povão.
Quais seriam os herdeiros do Judas
desta vez? No ano passado fulano herdou o chapéu, sicrano as cuecas. Quem seriam os “cristos” do Sábado de
Aleluia? Às vezes o testamento era
escrito em forma de versos. O conteúdo era sempre divertido. Picante. Cheio de
fofocas a respeito de pessoas da cidade. Naquele época, os políticos já eram
lembrados. Os herdeiros, muitos levavam na brincadeira. Outros não. Contavam
que alguns ficavam emburrados a semana inteira.
Mas, a meninada permanecia em
alegria o tempo todo, à espera do enforcamento, quando o boneco seria preso por
uma corda pelo pescoço. No galho de uma árvore, num poste? No momento em que o enforcado
balançava as pernas lá de cima, sob aplausos, ateavam-lhe fogo. As bombas que
faziam parte de seu enchimento explodiam e voavam estopa, papel, serragem- sei
lá de que era mesmo feitos as vísceras e o interior de seu corpo- para todo
lado. Pedaços de membros, chapéu, roupas... Alguns até pegavam resíduos como relíquias.
Findo os estalos, lembrávamos que
estávamos de barriga vazia. Saíamos em bando. Pais , mães, filhos. Falávamos do
testamento. Relembrando os herdeiros, imaginando que fulano iria ficar amuado.
Dizendo que naquele ano haviam caprichado mais no discurso e também na
quantidade e força das bombas. Durante o almoço daquele dia e semana inteira o
assunto não era outro.
Sabe. Há alguns dias, folheei uma
edição de 05/04/1947 do “Vossa Senhoria
“, o menor jornal do mundo, que foi editado em Pará de Minas no período de 1946 a 1948. Foi o que me
fez recordar esses fatos. Na página 11 tem um “Testamento de Judas”. Como não
há nenhuma referência, fiquei especulando. Teria sido esse o testamento lido na
queima do Judas do ano de 1947?
Como eu nem havia ainda nascido, vou
continuar na especulação. Ou você saberia me dizer se foi? Como lhe disse, as
lembranças não são muitas.
Vossa Senhoria, p. 11. 05/04/1947
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