segunda-feira, 9 de abril de 2012

Testamento de Judas


                                                                       Terezinha Pereira


            As lembranças não são muitas. Você sabe. O tempo costuma levar consigo fatos e boatos. A festa da vingança contra Judas era realizada aos Sábados de Aleluia. Havia de ser no dia seguinte ao da morte de Jesus. Ainda bem que muita coisa fica escrita.
            Judas Iscariotes. Ele havia traído Jesus em troco de 30 moedas. De prata.  E ele  havia sido um dos 12 seguidores do Mestre. Conhecia-O bem. Mesmo assim, apontara-O a Seus algozes. “Aquele é o homem que vocês procuram.” Nos evangelhos, Mateus (10:2-4), Marcos (3:16-19) e Lucas (6:13-16) atestam a traição.
            Mateus também fala do remorso, do destino das 30 moedas e do suicídio de Judas. O que restou a ele, como delator. “Judas ficou cheio de remorsos...: trouxe de novo as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: 'Pequei ao entregar à morte um inocente.' Eles replicaram: 'Que nos interessa isso? O problema é teu.' Lançando então por terra as moedas de prata, ele retirou-se e foi enforcar-se." ( 27, 3-5)
            O homem não quis ser perdoado pelo Mestre........ Não lhe deu o tempo. Se ele mesmo se dispôs a receber o castigo... Para os cristãos, em grande parte deste vasto mundo, em terras de origem latina, seguem-se mais de 2.000 anos de vingança. Malhar, enforcar, queimar o Judas.
            Minhas poucas lembranças da queima de Judas estão na infância. Da época que ele ainda não ganhava a máscara do político da hora. No Sábado de Aleluia, a mãe servia o café da manhã e já preparava o almoço, pois em breve não podia mais conter as crianças. Pelas 10, saíam com um boneco de pano, tamanho de um homem, na carroceria de uma caminhonete (?). O Judas.  Meninada e gente grande seguiam atrás. Aleluia!  O cortejo percorria as ruas principais da cidade até chegar à Praça da Independência, o palco de todos os anos. Acho que havia banda de música e muito foguete. Quando eu chegava à Praça da Independência, esta já estava lotada. Em pleno meio do dia, fazia um calorão danado. Eu torcia para que o vendedor de picolé passasse logo. Nesses dias, cada menino da casa ganhava uns trocados para o picolé. Os que haviam vendido velas para a procissão da Sexta-Feira da Paixão podiam comprar dois.  
            Ao meio dia em ponto começava a leitura do testamento do Judas. Momento solene. As pessoas, a banda, os foguetes, tudo em silêncio. Um orador, será que ficava em cima da mesma caminhonete do Judas?... O orador mostrava uma papelada. Todos aplaudiam. E ele começava a leitura. A curiosidade tomava conta do povão.
            Quais seriam os herdeiros do Judas desta vez? No ano passado fulano herdou o chapéu, sicrano as cuecas.  Quem seriam os “cristos” do Sábado de Aleluia?  Às vezes o testamento era escrito em forma de versos. O conteúdo era sempre divertido. Picante. Cheio de fofocas a respeito de pessoas da cidade. Naquele época, os políticos já eram lembrados. Os herdeiros, muitos levavam na brincadeira. Outros não. Contavam que alguns ficavam emburrados a semana inteira.
            Mas, a meninada permanecia em alegria o tempo todo, à espera do enforcamento, quando o boneco seria preso por uma corda pelo pescoço. No galho de uma árvore, num poste? No momento em que o enforcado balançava as pernas lá de cima, sob aplausos, ateavam-lhe fogo. As bombas que faziam parte de seu enchimento explodiam e voavam estopa, papel, serragem- sei lá de que era mesmo feitos as vísceras e o interior de seu corpo- para todo lado. Pedaços de membros, chapéu, roupas... Alguns até pegavam resíduos como relíquias.
            Findo os estalos, lembrávamos que estávamos de barriga vazia. Saíamos em bando. Pais, mães, filhos. Falávamos do testamento. Relembrando os herdeiros, imaginando que fulano iria ficar amuado. Dizendo que naquele ano haviam caprichado mais no discurso e também na quantidade e força das bombas. Durante o almoço daquele dia e semana inteira o assunto não era outro.
            Sabe. Há alguns dias, folheei uma edição de 05/04/1947  do “Vossa Senhoria “, o menor jornal do mundo, que foi editado em Pará de Minas no período de 1946 a 1948. Foi o que me fez recordar esses fatos. Na página 11 tem um “Testamento de Judas”. Como não há nenhuma referência, fiquei especulando. Teria sido esse o testamento lido na queima do Judas do ano de 1947?      
            Como eu nem havia ainda nascido, vou continuar na especulação. Ou você saberia me dizer se foi? Como lhe disse, as lembranças não são muitas.

Vossa Senhoria, p. 11. 05/04/1947

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