sábado, 8 de agosto de 2020

Mais forte que o touro

José Roberto Pereira

Cadeira n.º 12

Eu tenho uma cicatriz enorme na minha perna direita. Ela é saliente, está abaixo do joelho e circunda a perna quase toda. Originou-se de um corte profundo em que o osso ficou exposto. Na parte

mais silente, ainda é possível reconhecer as pontas pontiagudas e afiadas do arame farpado. Pressionado, o arame foi entrando na minha pele, cortando a carne até descobrir parte do osso. A princípio, não senti dor. Não durou mais que dois minutos o tempo de eu ser arremessado, espremido contra o arame e cortado. Não sentia a dor do corte nem gritava. Estava emudecido pelo pavor de ter um touro chifrando-me as costas e comprimindo-me com toda a força que conseguia contra os fios de arame farpado. Eu sentia sua cabeça, seu hálito, os pelos grossos e os chifres, que também atingiam minha cabeça, mas não percebia minha pele sendo cortada.

Antes, eu estava sentado na traseira de um carro de boi. Minha tia Maria Custódia conduzia a junta de bois que nos levava. Ela, em pé sobre a carroça, guiava os animais com a ajuda de uma vara que continha um ferrão na ponta. Saímos do terreno do meu avô, passamos por uma porteira que foi aberta por mim e entramos em terras do vizinho, o senhor Nereu. Foi só o tempo de eu me sentar novamente no fundo da carroça, após ter fechado a porteira, segurar-me nos fueiros e ficar com as pernas balançando no ar...

Fomos surpreendidos. Um touro surgiu entre moitas do pasto, pulou para dentro da estrada e veio com tudo para cima dos bois que puxavam a carroça, presos na canga... Houve um princípio de briga, e o carro de boi ziguezagueou na estrada, levantando poeira. Seguidamente, um solavanco forte, e o carro foi de encontro à cerca de arame. Quando percebi, já estava sendo pressionado pela cabeça do animal raivoso contra os fios de arame...

Subitamente, um dos fios, o que cortava minha perna, arrebentou... Fui jogado para o outro lado da cerca, numa palhada de milho. Só então percebi o corte. Tive um princípio de pânico. Mesmo com cinco anos de idade, eu entendi a gravidade da ferida e me dei conta de que tinha que sair dali às pressas. Num instinto de sobrevivência, voltei pela mesma abertura do fio arrebentado, único lugar que me daria acesso novamente à estrada. Já não era o touro que me despertava medo, era o corte profundo que exibia tão descabidamente parte do osso da minha perna. Nem pensei que poderia ser atacado pelo animal novamente, eu só precisava sair dali para estancar o sangue. Precisava ir em busca de qualquer pessoa que pudesse me acudir. Eu tinha ciência de que precisava chegar até alguém para ser salvo. Não vi  nem ouvi minha tia... Norteado pelo instinto de sobrevivência que me tomava por inteiro, incrédulo em relação a qualquer outro perigo, passei, com toda rapidez que pude, pelos animais que ainda lutavam. Venci o trajeto entre eles e a porteira, correndo, ora com a perna cortada suspensa no ar, ora apoiando-a levemente no chão empoeirado. Passando por entre as tábuas da porteira,  corri o quanto consegui ainda sem chorar ou gritar... Até que cheguei ao terreiro da casa do meu avô materno, Francisco. Dei de encontro com minha tia Lutinha. Ela carregava latas cheias d’água para os porcos. Quando olhou a minha perna, ficou em choque. Desnorteada, jogou um pouco de água sobre o corte da perna. Só então meu grito saiu. Vi outros cortes e arranhões pelo meu corpo. Minha cabeça, a outra perna, as costas doíam, mas o corte na perna direita, com a pele desbeiçada, me impressionou... Senti uma dor tão intensa que perdi o fôlego. Tive um apagão...

Tenho uma vaga lembrança de meus pais e tios, depois disso, no meu entorno, e de mim ainda de pé, no terreiro, apoiado em alguém. Não tenho recordação do paradeiro, naquele dia, da tia Maria Custódia...

Em seguida, meu pai me pegou nos braços e saiu da casa do meu avô, correndo, em direção à nossa casa, seguido pela minha mãe. Eu passei meu braço em volta do pescoço dele numa tentativa de travar meu corpo, pois os solavancos dos passos apressados causavam dor em todos os cortes. Eu já não chorava, não conseguia. Só queria me livrar das feridas. Passamos novamente pela porteira, pelos bois que já estavam mais apaziguados, e seguimos ora correndo, ora com passadas rápidas. O trajeto entre as casas era longo, sinuoso, com morros íngremes e descidas escorregadias cheias de cascalho. Meu sangue tingia o sujo da roupa do meu pai, que, antes do acontecido, estava trabalhando em lavoura de tomate. Sua camisa estava encharcada do meu sangue e de suor. O fôlego lhe faltava nas subidas íngremes. Talvez meu corpo machucado pesasse mais a cada passo dado. Doíam-lhe as costas, sangravam meus cortes... A dor que eu sentia era menor que o desejo de me livrar dos ferimentos. Minha mãe corria, tentando nos acalcar.  Às vezes, ela desaparecia do meu campo de visão. Em alguns momentos, conseguia correr quase ao nosso lado. Quando me olhava, chorava... Chorávamos ela e eu, menos meu pai, que só queria correr até nossa casa. O trajeto entre as casas, que ficavam em lugarejos diferentes, durou uns quarenta minutos. Tive outro apagão.

Não tenho lembrança da chegada à minha casa, da reação da minha avó Adelina ao me ver tão machucado. E nem sei como apareceu no lugarejo onde morávamos, naquele idos, final dos anos de 1970, um carro que, milagrosamente, nos levou ao hospital, na cidade. Automóvel por aquelas bandas era uma raridade. Depois de uma hora dentro do veículo, chegamos onde alguém, por fim, podia me salvar. Tive outro apagão.

Acordei na cama do hospital, com enfermeiros e médicos ao meu redor, dentro da sala cirúrgica. Percebi que estava amarrado. Gritei profundamente, tomado por pavor... Outro apagão. Recobrei os sentidos. Minha mãe estava com seu rosto colado ao meu, tentando me acalmar, dentro da sala cirúrgica. Suas lágrimas se misturavam às minhas. Desisti de tentar manter meus olhos abertos...

Acordei na casa da minha avó paterna, Adelina, onde morávamos, com a cabeça encostada ao peito do meu pai. O touro não havia nos vencido. Nem em pensamentos, nós três sequer cogitamos a hipótese de que o animal poderia nos vencer. Agarramos-nos uns aos outros e o vencemos; mas, emocionalmente estávamos devastados. 

Durante muitos anos, eu só dormia encostado ali, no peito do meu pai. Ele dormia em posição fetal e eu ainda colocava meus pés entres suas pernas. Era o único lugar que me fazia sentir mais forte que o touro.

 

(Desejo um feliz Dias dos Pais a todos os papais e a todas às mães que também são pais. Nossos heróis!!)


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