Déa Miranda
Alguns textos que lemos em nossa infância nos marcam
tanto que nunca se apagam da nossa memória. Costumamos nos lembrar sempre
deles. Às vezes são até textos extremamente simples, sem atrativos, que passam
despercebidos à maioria e para alguns são sempre lembrados.
Há muitos anos, li em um dos livros
colegiais uma história da formiguinha, escrita por Godofredo Rangel. Ele
narrava a história de uma formiguinha doceira que o “visitava” todos as noites
à hora em que ele habitualmente escrevia. Ela surgia de um dos cantos da mesa,
atravessava-a, passando sobre o papel e desaparecia apressada. Ele foi se
afeiçoando a ela e o dia em que ela não apareceu ficou imprestável, teve que
depor a pena, cheio de apreensões. Esperou por ela por várias noites e ela
nunca mais voltou.
Comigo também aconteceu um caso com formigas. Apesar
de se tratar das mesmas personagens, o meu é bem diferente e até engraçado.
Certa vez, eu me levantei no meio da noite para dar remédio a um dos meus
filhos. Era um xarope de um vermelho intenso. Sonolenta, coloquei o copinho com
um restinho do remédio sobre a mesa, sem me dar ao trabalho de lavá-lo. Mais
tarde, meu filho pediu água. Fui até a cozinha e vi algumas formigas doceiras,
aquelas amareladas e grandes, que possuem o corpo meio transparente, sobre a
mesa de mármore branco. Apesar de não ser o famoso mármore de Carrara, era de
um branco bastante intenso. Por causa disso, o contraste delas com a pedra
estava bem destacado. Percebi que estavam estranhas. Reviravam-se, como se
estivessem tontas. Parecia que tinham perdido o controle do corpo. Tinha
momentos em que elas reviravam cambalhotas e depois tentavam se manter em pé.
Notei que a segunda metade dos seus corpos estava vermelha como um minúsculo
balão cheio de suco de groselha. Nesta hora, olhei para o copo-medida do xarope
e vi que ele se encontrava totalmente vazio. Compreendendo o ocorrido, comecei
a rir sozinha no silêncio da noite e falei com elas: “Quem mandou vocês
roubarem xarope?” Se soubessem que a prova do crime ia ficar tão evidente, não
teriam cometido o delito. Evidente nos dois sentidos: no efeito sobre elas
(pareciam meio dopadinhas) e na transparência púrpura dos seus corpos. Mas,
coitadinhas, caíram como patinhos!
Certa vez, passei a observar a vida de uma lagartixa
que todas as noites saía do seu esconderijo, debaixo do prato que sustentava o
lustre. Ela se posicionava esperando os mosquitos que circulavam a lâmpada.
Ficava totalmente imóvel e, de repente, dava um salto, semelhante ao bote de
uma cobra e rapidamente pegava o inseto. Permanecia ali até se manter bem
alimentada e depois entrava novamente para sua “casa”. Era interessante
observar seu ritual diário de sair da toca. Não saía de uma vez. Surgia
primeiro um pedacinho da cabeça, daí uns segundos ia aparecendo mais um
pedacinho dela. Depois de uma pausa cautelosa, o corpo ia começando a
despontar. Outra parada estratégica para sondar o ambiente. E assim lentamente
ia surgindo todo o corpo. Isso se repetia todas as noites, num mesmo horário.
Um dia também ela não apareceu mais e fiquei imaginando qual teria sido o fim
daquela cautelosa lagartixa. Teria tido uma morte natural ou algum predador
conseguira pegá-la num momento de descuido? E assim, como Godofredo Rangel, eu também
esperei por ela e nunca mais a vi.
Déa,
ResponderExcluirQue texto mais lindo!
Ternura e literatura para falar de simples costumes dos bichinhos da natureza.
Parabéns,Beijo,
TT
Que bom que você gostou, Terezinha!
ResponderExcluirObrigada!
Bjs,
Déa