Mulher e filhos dormindo.
Escuridão branda, sem véu.
E eu aqui sozinho,
madrugada adentro.
Um sax começa a soprar ao fundo
notas sombrias,
que aos poucos se iluminam
em fogo,
vida,
mar negro estrelado.
Eu na madrugada,
em corpo
de mãos leves,
pés soltos nus no piso de madeira,
barba por fazer,
olhos abertos serenos –
Sozinho em corpo,
mas não só.
Minhas companhias:
eu em paz,
eu alegre,
eu soturno,
eu sem pensamento,
eu deserto enfeitiçado,
eu lago profundo gelado nas montanhas tristes da Escócia,
eu terra cinza escura de colinas medievais,
eu mundo,
eu passado força e vida ancestrais...
Ao meu lado,
abertas,
Clarice,
e uma garrafa de vinho tinto deixando-se ser,
sua cor escura brilhante,
seu passado distante,
aroma doce de festas romanas na Gália,
sabor intenso,
Douro.
Ao fundo,
um jazz “suave-noturno” (Kerouac),
notas negras
que escorrem leves,
cheias de luz.
Na estante,
tomados de paixão,
espíritos iluminados me espreitam pelas frestas do tempo e
do espaço.
Clarice aos meus ouvidos sussurra:
“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”.
(Qual deles se aproximou mais disso que não tem nome?).
Mistério.
O que eu desejo é o mistério de mim,
de tudo,
é respirar sem ter que ir à tona –
é estar o tempo todo à tona,
fora da matéria espessa fervente ou gelada demais
dos compromissos inadiáveis,
dos palcos da vida (onde bajular e fingir parecem matéria de
sobrevivência),
do sucesso a alcançar,
para os outros,
para a imagem de si
– máscaras.
O que eu desejo é estar no meu próprio elemento,
completamente livre do peso e da dor de não ser eu.
Agora,
neste quarto que se abre aos meus olhos,
do tamanho do mundo,
vejo na entrada,
junto à porta,
amontoados:
trapos, pedras, espinhos, penas, cascas e peles
do não-eu –
Ser livre é isso? –
Despojar-se...
O jazz sou eu,
Clarice sou eu,
minha família sou eu,
o amor dos que me amam sou eu,
ser professor sou eu,
escrever sou eu,
este poema (ou sei lá o que isto seja) sou eu,
este vinho,
esta paz,
esta ausência de tudo que não importa,
de tudo que não me acrescenta nem me tira –
tudo isso sou eu
– sozinho em corpo, mas não só,
madrugada adentro.
Flávio Marcus da Silva
Oi, Flávio!
ResponderExcluirAcabo de ler o seu poema e percebo que você entrou sorrateiramente no íntimo do seu ser, no mundo do "eu" e arrancou dele todo o significado de estar só, saboreando o encontro consigo mesmo.
Déa Miranda
Olá, Déa!
ExcluirFoi isso mesmo. Sondei fundo dentro de mim mesmo e me conheci um pouco mais nesse dia. Estou começando a entender agora o que torna vocês, poetas, escritores especiais.
Um abraço,
Flávio
Pois é, amigo...
ResponderExcluire você que me disse que não conseguia
escrever poesias...
Fiquei encantado... e assim, "madrugada adentro"
mesmo que longe das "montanhas" medievais e tristes da Escócia ou mesmo das doces festas da Gália...
e assim querendo resolver mistérios...
e Clarice sussurrando aos seus ouvidos...
dá pra não querer resolver nenhum mistério...
Um encanto...
Parabéns.
Obrigado pelos comentários, Déa e Fonte.
ResponderExcluirUm abraço,
Flávio Marcus
Que boa surpresa, Flávio! Gosto de ser surpreendido a cada dia pela sua sensibilidade. Essa é a matéria que torna as pessoas especiais e, mais ainda, a que forma a verdadeira poesia: aquela que não está só nas palavras, mas na vida! Parabéns!
ResponderExcluirMárcio Simeone.