Querido Papai Noel,
Neste ano eu me comportei
direitinho. Obedeci à mamãe e ao papai, não briguei com a minha irmã e usei o
dinheiro da minha mesada com muita responsabilidade. O papai me dá setecentos
reais todos os meses para eu gastar com o que eu quiser, mas eu economizo duzentos
reais por mês. (É que eu quero juntar três mil reais para levar para a Disney no
ano que vem e comprar um monte de coisas legais para mim).
Na escola eu também fiz tudo
direitinho. Meus colegas fizeram muitas coisas erradas, mas eu não. Todos os
dias eles insultavam um outro menino, que veio estudar na nossa sala com uma
bolsa de estudos, porque ele é pobre e negro, coitado. Eles batiam nele e o
chamavam de um monte de coisas feias, como urubu, filhote de cruz credo e
favelado; e ainda chamavam a mãe dele de prostituta e o pai de drogado e
traficante. Só que eu não. Eu ficava caladinho. Eu não conversava com o menino
porque não pegava bem (a galera ia ficar me zoando e ia acabar me isolando
do grupo); só a professora e a diretora falavam com ele. Mas eu nunca bati nele,
nem o chamei de nomes feios.
De vez em quando umas pessoas
muito pobres tocam o interfone daqui de casa pedindo um prato de comida ou um
pedaço de pão. Quando sobram restos de comida nos pratos, eu junto tudo, embrulho
num jornal e levo para eles. Quando não sobra nada, eu pego uns dois ou três
pães (que ficam guardados no armário a semana inteira para endurecer e a
empregada poder ralar para fazer farinha de pão) e jogo para eles por cima da
grade. Um dia um menino que estava com eles me pediu água. Mesmo correndo o
risco de sujar o piso de granito da mamãe, eu abri o portão e deixei o coitado
usar a torneira do jardim. O meu pai até chegou na hora e empurrou o menino
para fora, chamando-o de pivete imundo. Eu fiquei muito triste com o papai.
Ontem esteve aqui em casa a minha
tia Jaciara. Ela me contou que só existe um Papai Noel de verdade: o senhor.
Ela disse que aquele Papai Noel que fica na casinha da Ascipam é de mentira;
que o Papai Noel de verdade é um espírito superior, que só visita as
residências de pessoas superiores, como nós, que merecem ser presenteadas. Foi
aí que eu entendi por que os alunos bolsistas lá da escola, que são inferiores,
só ganham de Natal brinquedos ruins, enquanto nós, superiores, ganhamos
brinquedos bons e caros. É que quem dá os presentes para as crianças pobres são
os próprios pais delas (ou alguma instituição de caridade ou empresa), que não
têm muito dinheiro, enquanto, no nosso caso, é o senhor mesmo, que vem com as
suas renas mágicas visitar as nossas casas.
Aproveito esta carta também para
agradecer o helicóptero de controle remoto, o computador, o tênis Puma e o
celular que o senhor me deu no ano passado. Muito obrigado, Papai Noel. Gostei
demais! O helicóptero ainda está funcionando, mas eu não brinco mais com ele
porque fiquei enjoado, então eu o empresto ao filho da empregada todo sábado de
manhã. O senhor precisa ver a alegria do menino! O computador já não me serve
mais, porque de uma hora para outra ele ficou muito devagar e o papai teve que
comprar outro. O tênis eu tive que parar de usar porque o Eloi, meu colega, chegou
com um muito mais caro do que o meu, então eu tive que pedir ao papai para
comprar um de uma marca ainda mais cara, para eu não ficar para trás. E o
celular, o senhor sabe, não dá para ficar com o mesmo por muito tempo, no
máximo dois ou três meses, porque sempre aparece um mais avançado, com design
mais moderno e mais caro lá na escola, e a gente tem que trocar o nosso, para
ninguém ficar zoando a gente.
Neste Natal, eu peço ao senhor um
laptop (o melhor que tiver no mundo), porque quinze colegas meus já têm os seus
e eu preciso ter o meu também; uma viagem ao Japão, porque até hoje ninguém na
minha sala foi ao Japão; e um celular novo (também o melhor do mundo), porque
eu não posso ficar para trás.
Ah! Já ia me esquecendo! Se for
possível, eu queria confirmar uma coisa com o senhor. É que ontem, junto com a
tia Jaciara, veio nos visitar o tio Tomás, que é deputado lá no Congresso. Ele
ficou o tempo todo rindo (com a mão naquela pança enorme que ele tem), bebendo
um vinho importado da mamãe (reservado para ocasiões especiais), e disse que
este ano o Papai Noel DELE vai chegar bem mais gordo (e de jatinho), por causa
de um aumento de mais de 60% no salário que eles mesmos se deram lá no
Congresso. A tia Jaciara tinha acabado de me contar a verdadeira história do
Papai Noel (ou seja, do senhor), e na hora só pude crer que o tio Tomás tinha
se equivocado. Como é possível que ele possa ter um Papai Noel só dele (mais
gordo do que o dos outros e que chega de jatinho e não de renas mágicas) se só
existe um Papai Noel: o senhor?
Um forte abraço, blá blá blá...
Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1
Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1
Muito bom! Desse jeito mesmo, o rico se acha bom demais dando os excessos para os que não tem o essencial.
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