quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Licença para viver



Naquele dia o professor não foi trabalhar. Acordou tarde, sem despertador, pois o havia desligado na véspera, após decidir que ao colégio, no dia seguinte, não ia de jeito nenhum, que lhe cortassem o ponto ou lhe dessem uma advertência, não importava. Despertou ao natural, na hora que o espírito e o corpo quiseram, se espreguiçando, coisa muito fora do normal, já que acorda todos os dias em sobressalto, morrendo de sono, engole o café, o pão, lava o rosto, escova os dentes e sai em disparada rua abaixo, para não perder o ônibus. Isso todos os dias, porque no sábado tem que ir à feira cedinho, dar limpeza no apartamento, lavar roupas, preparar aulas, corrigir exercícios, e no domingo está morto, completamente destroçado, a ponto de quase só poder respirar com a ajuda de aparelhos, o que não o impede de ir visitar a mãe e lhe preparar o almoço – ouvindo-a reclamar da vida o dia inteiro –, para o que às sete da manhã tem que pegar o ônibus, pois o trajeto é longo.

Naquele dia foi diferente, era sexta-feira, saiu da cama com o tempo livre, dez horários vagos para curtir, um dia só dele. Preparou duas torradas, do jeito que servem nas pastelarias de Portugal, terra que visitara uma vez, quando criança – nem se lembrava mais da cidade onde ficara, nem do quarto onde dormira, mas de sua memória nunca tinha saído o gosto daquelas torradas, grossas, com muita manteiga –, e para acompanhá-las fez um café forte, adoçado no ponto, que bebeu lentamente, sentindo o aroma, a quentura, o prazer revigorando o espírito, aquecendo a vida que amanhecia com uma luz diferente naquela sexta-feira. Não, a luz não. Era ele que estava diferente, não cumprindo um dever, uma obrigação. Quem jamais poderia imaginar, ele, tão responsável e correto, não cumprindo um dever! Ainda mais aquele, fundamental, pedra angular da sobrevivência, do sucesso, da respeitabilidade, que é trabalhar. Pois não o estava cumprindo, e – pasmem todos que o conhecem bem – não estava nem aí.

Terminou o café e ficou parado no meio da cozinha pensando no que fazer. Já nem se lembrava mais de quando tivera um tempo assim, inesperado, longo, só para ele – tirando as madrugadas de insônia, nas quais às vezes pegava um livro de seu gosto para ler, com os olhos ardendo, preocupado com o inevitável e terrível amanhecer. Ter aquele tempo só para ele era um estranhamento, um susto de prazer, um acordar no paraíso sem nenhuma informação sobre as opções de lazer para o dia – se é que opções e dias há no paraíso –, como “Visite a piscina de fluidos celestiais e renove suas energias”. Não, ele realmente não sabia o que fazer.

Até que respirou fundo por um ou dois minutos e lembrou-se dos livros, das músicas, dos filmes... Há quanto tempo não lia um livro? Para as aulas já não lia mais nada, estava tudo pronto na cabeça, informações que ele fazia os alunos engolirem todos os dias para depois vomitarem nas provas, ano após ano, sempre a mesma coisa. Não, não queria saber de aulas nem do que lera para prepará-las, mas de livros escolhidos por prazer, deliciados sem pressa. Com muito custo lembrou-se do último que lera assim: “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino. E lembrou-se também de nomes de autores que nunca tivera tempo de ler e que naquele momento ressurgiam como promessas de futuros deleites: Rubem Fonseca, Clarice Lispector, José Saramago... E outra coisa... Há quanto tempo não beijava uma mulher?...

Foi então que, pensando em mulheres e livros, ele concluiu que precisaria de muito mais tempo livre, uma licença de quinze dias, um mês, dois meses, para o que teria que arranjar um atestado médico – daqueles fajutos, que seus colegas apresentam quando querem emendar a quinta-feira com o domingo –, e depois se submeter a uma perícia médica, alegando talvez depressão em último grau...

Mas pensaria nisso depois.

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

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2 comentários:

  1. Flávio, como seria bom ser dono dos nossos próprios dias. Para ser professor é preciso... viver! Ninguém dá aquilo que não tem, não é? Oxalá sejamos fornecedores de dias, de belos dias, porque os temos, sem ter que pedir licença. Seu belo conto me fez lembrar de um livro que li recentemente, de Pascal Mercier: Trem noturno para Lisboa. Um professor pode sair de repente de seu lugar e correr atrás de uma história. Uma história qualquer... Até mesmo a sua própria. Mas o essencial é ter uma história, que vá além do cotidiano e penetre as excepcionalidades dos dias. Abraço, Márcio.

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  2. Muito bom!
    Bem que esse professor poderia ter tirado uma licença para se candidatar a vereador. Tantos o fizeram.
    Diga a ele pra se candidatar a deputado nas próximas eleições.e só mandar fazer os santinhos... "não precisa votar em mim. Sou apenas um professor.e estou cansado de ser um ninguém."
    Abraço,
    Terezinha

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