Homenagem a Bartolomeu Campos de Queirós
Eu o vi e ouvi assim, diante de mim, uma única vez, quando esteve em Pará de Minas para uma palestra. No entanto, suas palavras, e os múltiplos significados que carregam, estão por aí. Para alguns, aguardando ansiosamente que sejam colhidas, dentro de fecundos livros. Para outros, como eu, que sejam retomadas, reconhecidas e recordadas.
Do tear da memória, Bartolomeu puxou o fio da palavra que a grafite teceu, letra a letra, palavra por palavra. Uma pedia outra e outra, e se aconchegavam todas. Bartolomeu diz que, na memória, verdade e mentira entrelaçam vivido e sonhado. Ele me enredou em sua grande teia, cujo fio vem de lá pra cá e vai de cá pra lá.
O ir e vir do fio trouxe o avô que escrevia nas paredes da casa, primeiro livro que Bartolomeu menino leu, mas também juntou as pontas do passado e do futuro, o vivido e o sonhado. Falou do luto, da perda, da dor, das crenças, tradições, benzeções, do medo. E tudo isso teceu com esmero e beleza. Revelou o conflito de Antônio diante dos ovos no ninho, por ter de interromper “o que estava ainda em vias de acontecer”. Dilema era ter de deixar o indez no ninho, impedindo outro destino ao curso que a vida ditava. Antônio era Bartolomeu menino.
No seu livro-manual Para bem criar passarinho, deu a mais proveitosa das recomendações: “ignorar as grades, as prisões, as teias (...) construir uma gaiola, mais ampla que a terra, de janelas abertas para o universo com seus planetas e constelações”.
Na Escritura, revelou que, assim como a virgem fora fertilizada pela palavra, também ele dela se alimentava. Foi lá que profetizou: o eterno “não tem nós de nascimentos ou embaraços de mortes. E o pensamento é terreno demais para decifrar intenso mistério”.
No tempo de voo, botou criança e adulto em longa conversa. A curiosidade do menino provocava o adulto com “coisas impossíveis de responder”. A pergunta suspende as medições e o adulto diz: o tempo “tem mãos para acarinhar desde o agora até o sempre”. Suspeitei despedidas em cada frase, mas havia mais do vivido e do sonhado a dizer.
No vermelho amargo, tem a mãe e a madrasta. Bartolomeu diz que “todo parto decreta um pesaroso abandono”, que “tudo é maio, tudo é seco, tudo é frio” ou, ainda, que “esquecer é desexistir, é não ter havido”. Maio é quando o fio se parte, tem cor e gosto de vermelho amargo.
Dia desses, vi um pequeno vídeo em que Bartolomeu falava da beleza, sem saber que seria instada a escrever sobre ele. Ouvi seu falar manso, seu jeitinho mineiro de engolir letras e juntar palavras, sem constrangimento algum. Reparei bem as feições de seu rosto, quando ele disse: “A beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho (...). Eu acho que a beleza é profundamente triste quando cê está sozinho. Cê não dá conta dela, ela pesa muito! Então, cê tem que passar pra alguém, sabe?” Como ouvir algo tão terno e não desejar se aproximar da sua solidão generosa?
Bartolomeu soube que a beleza nem sempre é doce. É por vezes amarga, como o tomate que se corta em finíssimas fatias ou doída como a canção na voz da mãe que morria. “Quando a dor é muita, eu escrevo”, dizia ele. Pra mim, Bartolomeu é um descobridor e revelador de belezas.
No momento em que finalizo este texto, o sol se põe pra encerrar o dia. Eu me encanto com tamanha beleza e digo: o Bartolomeu é que devia estar aqui comigo pra ver isso! Desconfio que, de alguma forma, ele está sim, apreciando o belo que morre e renasce como o sol ou como a palavra que machuca e ressuscita.
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