sábado, 1 de março de 2025

O carnaval, na terra dos palhaços

Márcio Simeone
Cadeira n.º 8



Grande foi a minha emoção de chegar à terra dos palhaços. Um lugar feliz e movimentado. Tudo era espetacular, ou melhor, qualquer coisa se transformava imediatamente em espetáculo. Muito embora houvesse poucas surpresas, porque quase tudo era previsível, todos reagiam como se observassem o que se passava pela primeira vez. Uma constante algaravia sonora de tambores, tarois, cornetas e apitos, entremeada por risadas menos ou mais agudas. Era uma diversão ilimitada.

As pessoas eram dotadas de grande agilidade corporal e caiam ao chão sem parar, levantando-se lépidas e fagueiras. Zombavam umas das outras, mas sem deixar ressentimentos. No máximo reagiam com bofetões rocambolescos que arrancavam gargalhadas - e logo se reconciliavam.

Todo mundo estava preocupado em se mostrar. Assim, a vida nas ruas era bem intensa. Havia uma profusão de cores, também, com pouco espaço para os tons pastéis, menos ainda para os de cinza.  Todos os gestos eram largos e incontidos, bem como a falação, numa alegre cacofonia. A princípio classifiquei esses comportamentos como exagerados. Mas logo os associei aos exageros da minha própria terra, talvez até menos alegres do que esses, decidindo-me, então, a focalizar nos detalhes mais peculiares.

As crianças são barulhentas e suas brincadeiras desajeitadas. Adolescentes sempre exibem algum adorno que os diferenciem dos adultos e das crianças. Suas brincadeiras e jogos costumam, no entanto, ser mais agressivos, quem sabe testando os limites de suas interações e a paciência e o aparente bom humor dos pais. Pude ver uma juventude inquieta, mas sem interrogações quanto ao futuro como as que observo na minha terra. Afinal, se dão conta de que querem ser como os pais e todos riem juntos do seu destino comum.

Passado algum tempo, fiquei decididamente confuso. Já não conseguia definir o que era toda aquela alegria e agitação, se uma felicidade genuína, fartamente evidenciada, ou só uma representação de forma a manter essa aparência. Cheguei mesmo a pensar que toda essa demonstração seria dirigida só a mim, encenada para o meu olhar estrangeiro, já que, entre os nativos, deviam saber bem melhor o que lhes passava no fundo da própria alma.

Conheci os estudiosos da universidade local. Ao primeiro contato, não me pareceram levar a sério a produção de conhecimento. Ou, pelo menos, não tanto quanto eu, que me dedico à ciência com toda devoção. Não estudavam a sociedade, então não se arriscavam a explicar por que aquela terra era assim configurada. Gostavam de teorizar sobre os objetos. Mas nunca colocavam em questão seu próprio comportamento, motivo pelo qual a psicologia nunca prosperara. Pensando bem, acho que vi ali mais arte que ciência. Seja como for, lá se encontravam os que eram considerados os mais sábios, não necessariamente os mais engraçados. Imaginei que, com o passar do tempo, talvez eu pudesse realmente comprovar uma hipótese de que naquela academia estavam alguns dos mais rabugentos dentre aquela gente.

Procurei pelos antropólogos e descobri, espantado, que só havia um. Ele fez questão de me conhecer e o encontro foi agradavelmente patético. Não me fez perguntas, só me perscrutou dos pés à cabeça, me dava leves tapinhas e me olhava fixamente para me fazer rir. Toda sua curiosidade parecia focalizar-se na forma de me surpreender e divertir. Anotava com rabiscos ininteligíveis numa grande lousa. Às vezes parava num gesto meio cômico de pensador e tornava a me investigar, tirando imaginariamente as minhas medidas. Não me foi útil em informações.

A economia, obviamente, girava em torno da indústria do entretenimento. A agricultura estava limitada, em parte pela tradição, em parte pelo clima, ao plantio de milho - exclusivamente para a produção de pipoca. Mas também prosperava a indústria do vestuário, sendo referência não em luxo, mas em extravagância. A grande dificuldade estava em disciplinar a mão de obra.

A propósito do governo, nele está há bom tempo instalado um palhaço bem velho, que já perdeu muito de sua flexibilidade e agilidade. Mas o seu grande prestígio é o que faz com que todos se lembrem das regras básicas da palhaçaria. Talvez eu tenha compreendido que, no meio da agitação e da velocidade daquele cotidiano ele represente outra relação com o tempo (e com a gravidade). Percebi que ele andava sempre mais lento que os demais. Governava com um conselho de anciãos, o que me fez entender a regra política fundamental do lugar. Fiquei admirado pelo fato de que eles tinham realmente tempo para ouvir, o que era raro nas conversações - ordinárias ou não, do povo em geral - onde se falava de tudo e de todos, mas nenhum assunto era concluído. Ademais, não precisavam se exibir tanto a esta altura, já que passaram a vida naquele jogo de apresentações e representações que fazem o espetáculo constante e com requisitos de risos e aplausos.

Curioso, fiquei até o carnaval. E foi surpreendente, alimentando ainda mais em mim a sensação de ver minha própria terra invertida num espelho convexo. Ao contrário de tudo o que havia conhecido até então, foi nesta ocasião que pude ver toda gente sair às ruas sem o colorido e sem o alarido habituais. Andavam devagar, cumprimentavam-se com mesuras e reverências contidas e quase solenes, saindo em longos cortejos meio sonolentos. Estampavam seus rostos com uma expressão melancólica.

Em minha leitura, permitiam-se em breves dias o que lhes era reprimido e vedado ao longo do ano. Mas essa explicação não me satisfez e fiquei a recalcular muitas hipóteses. Ainda que jamais a confirme, a minha predileta dita que é ali, neste intervalo, que pulsa a verdadeira vida e o verdadeiro caráter dessa gente, uma pausa na permanente representação compulsória. A menos que tudo seja apenas fantasia e alegoria, o que me confunde e me joga no terreno das ilusões. 

Enquanto estava absorto nestes pensamentos, caiu em minhas mãos o jornal do dia. Fui surpreendido por um artigo escrito pelo antropólogo local, sobre os eventos carnavalescos, mostrando uma veia filosófica inesperada. Dentre outras coisas, dizia ele: "nossa gente não saberia o que é a alegria sem a tristeza; uma alegria radical só se cumpre em relação às mais profundas tristezas, mas temos que lembrar que nem uma nem outra definem o nosso ser. Elas são tão somente possibilidades". E foi o que aprendi.


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Imagem: composição com imagens de https://www.gratispng.com/ 


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