terça-feira, 16 de junho de 2020

Amanhecer

José Roberto Pereira

Cadeira n.º 12

Manhã

Manhã que amanhecerá ainda escura, nebulosa, enigmática

Sobre o muro, conspira o universo que o vírus fabrica

Vírus que penetra nas entranhas

Porta de entrada da vida e saída da morte. O corpo é louça prestes a se quebrar

Adoecem órgãos diante do inesperado. O germe não é visível

Carne humana se contamina quando exposta ao ar

Bandeira branca, hasteada sobre o símbolo da ciência, clama por trégua

Estes horizontes que se alargam sobre o concreto armado despertam piedade

Já não somos os mesmos. Nem as coisas. Aquelas ruas largas e movimentadas

Coalhadas de lixo, de ratos imundos, manchadas de sangue do homem e do animal

Impregnadas por odores, gases e por cusparadas atiradas pelas bocas

Caídas pelo asfalto onde tantos pés calçados carregavam imundícies

Por ora, as ruas, qualquer rua, se espreguiça, comprida, vazia, limpa, banhada de sol

O mato cresce entre paralelepípedos. Flores silvestres brotam entre rachaduras e rugas

Dentro das casas, pessoas, confinadas e unidas, resgatam ofícios

E afazeres à espera do amanhã. O tempo não voa como descrevem as poesias

Ninguém sonha viver sobre o arco-íris. Acuados, todos esperam

Almejam que o amanhã venha. Clamam pela Estrela d’alva, pela aurora

Fazem pedidos e orações, mas não imploram pelo milagre

Anarquistas, quase todos buscam reconciliação

Anseiam perdão de alguma divindade, de alguma árvore da rua

Das frutas nos mercados, da praça do bairro e das putas que os feriram 

Amém

Nos continentes, rios e mares, os povos, a sós, aos bandos e/ou aos pares

Assistem aos modos, aos sonhos, à ganância, ao medo enferrujando-se, esquecidos

Nas gavetas, na sala ampla, nas pastas nos escritórios

Tudo empoeirando sobre o olhar humano

Fitando os dias que se revezam. Cada ser fermenta processos de mudanças

Promessas

Com quantas coisas a vida nos presenteia! Quanto de espaço ocupa o ócio

A perda, o choro, o rancor, a mágoa, a felicidade e o amor

Quem mais se aventurou aos bordados, à culinária e às paixões  

As artes e as ciências transformaram mais o mundo do que as manchetes dos jornais

Anunciando o futuro

Turvo

Que inevitavelmente nascerá. E ri-se o destino irônico, alimentando esperanças

Quem se preparar melhor para o amanhã, poderá ter

Dias melhores. Amém.

2 comentários:

  1. "Dias melhores. Amém."
    AMEM. AMEM. AMEM-SE! Amém!
    Conceiçāo Cruz.

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  2. Texto forte e verdadeiro. Parabéns, José Roberto Pereira! Que estejamos preparados. Que tenhamos dias melhores. Um abraço.

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