segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Bornata e sua boneca de papel

Conceição Cruz
Cadeira n.º4



        Há muitos e muitos anos, no século passado, entre a primeira e a segunda grande guerra, num povoado próximo ao arraial do Patafufo, vivia uma linda menina: ela era loira, magra e criativa. Seus cabelos eram lisos, até a altura dos ombros. Seu nome era Geralda e seu apelido era Bornata (antigamente, as pessoas tomavam remédio por conta própria. Havia muita mortalidade e poucos médicos!).

            Geralda, ao se sentir doente, logo pedia para a mãe o famoso bicarbonato: daí o apelido.

        A vida, naquele local, era árdua. Todos comiam com o suor do próprio rosto. Era preciso, a exemplo de seus pais, trabalhar a terra para fazê-la produzir.

        Conforme todo o mundo sabe, as casas das roças eram, extremamente, simples: chão de terra batida, telhado com telhas curvas, janelas de madeira e um quintalão varridinho, varridinho...

         Naquela época, não havia computador, nem videogame, nem televisão, nem carro, nem médicos... Nada do que temos hoje... Nem luz elétrica!

            Somente nas cidades havia carros.

            Rádio? Só à válvula!

            Na hora de brincar, Bornata reunia suas amigas: Rita, Lúcia, Lucinha e Alice.

            Brinquedos? Pedrinhas, retalhos, restos de cuia, cabaça, cacos de telha... Fabricavam, com as palhas de milho, suas próprias petecas e bonecas; as panelinhas, eram objetos feitos de barro trazidos da beira do riacho, que a imaginação traduzia por panela; dobravam as folhas das piteiras para construírem suas casas: brincavam de comadre e, as ricas, ficavam no andar de cima e, as outras, no térreo. Bornata, naquela esbelteza, era sempre convidada a ficar no andar de cima; assim, elas passavam horas e horas brincando...

            Um dia, seu Pai trouxe da cidade grande uma boneca para Bornata. Era uma boneca de verdade! Todas as suas amigas se encantaram: até parecia gente! Ela era feita de papelão. Batizaram-na de Mariana. Brincaram! Brincaram! Brincaram! Os dias foram passando... Como era de se esperar, Mariana ficou sujinha, sujinha, sujinha... Todas as meninas queriam vê-la “tinindo em folha”! Tiveram a brilhante ideia de encher uma bacia bem grande de água e mergulhar Mariana, para lhe dar um bom banho! Para surpresa delas... A boneca se desmanchou na água! Que tristeza! E agora? Bornata chorou! Chorou! Chorou! Rita, Lúcia, Lucinha e Alice também!

A mãe de Bornata achou muito engraçado, pois onde já se viu lavar boneca de papel? Não fiquem tristes! Pouca coisa é eterna! Vamos fazer bonecas de pano?

Bornata e suas amigas, ainda chorosas, pegam agulha, tesoura, linha, retalhos de tecido e sonham... Sonham com a boneca Mariana... Ponto a ponto... Vão juntando os restos de retalhos. Pintam daqui. Bordam dali. Costuram acolá... A boca bordada de vermelho, os olhinhos de preto. O cabelo? Era o próprio “cabelo do milho”. Aos poucos, aquele emaranhado de coisas vai ganhando forma.

De repente... Surgiu uma nova bonequinha! Foi uma grande alegria! Mariana, agora, está guardada na lembrança... Ganhou vida eterna! Será sempre a bonequinha de papel.

Assim, brincando, Bornata nem imaginava que ela e suas amigas se tornariam, em um futuro não muito distante, costureiras “de mão cheia! ”: sobreviveriam à outra guerra, à fome, ao século!

E transpondo o tempo...

Na simplicidade, no anonimato de ser Mãe-Mulher, Dona-de-Casa, fazem-nos refletir: o mais importante não é o que se tem ou que nos falta, ou se o Mundo está ou não em conflito, mas o que se sente, a maneira como se sente, o que se pensa, a forma como se pensa e, a partir daí, o que se constrói...

__________________________

(Em outubro, quando a verdadeira Bornata completa 90 anos!)

_______________________

DEDICATÓRIA: à Mariana Lopes, que um dia, saiu da cidade grande, chegou em Pará de Minas com sua alegria, suas músicas com letras trocadas, sua risada marota, suas invencionices! Sentia-se criança com a gente... E num outro dia qualquer, tal qual a bonequinha de papel de minha Mamãe, ela se foi para muito além! Diluiu-se no tempo! Restou-nos a doce lembrança, impregnada de amor e saudades!

_______________________

Imagem: livro elaborado em projeto pedagógico das professoras Carla Cristina de Oliveira Damasceno, Gisele Maria de Sousa e Roberta Silva, do Centro Municipal de Educação Infantil Lúcia Lima de Carvalho, de Itaúna/MG









11 comentários:

  1. Que linda mensagem de reciclagem!

    ResponderExcluir
  2. Bornata... a boneca de papel, simples assim!!!
    Simples como deve ser a vida!!!
    Parabéns Conceição, você me encanta sempre com a forma apaixonante de escrever ou melhor dizendo dar vida aos seus pensamentos!!!!!
    Abraços, Irene

    ResponderExcluir
  3. Ótima história!
    Parabéns àtodos que preservam nossa cultura!

    ResponderExcluir
  4. Até hoje essa linda menina tem o dom de fazer artes maravilhosas! Sou fã!

    ResponderExcluir
  5. Seu conto suscita nos leitores muitos sentimentos e lembranças, cara Conceição. Lembrou-me a avó paterna, Maria José Mendonça, paraminense, que fazia bonecas, "bruxas" e animais, com retalhos de pano. Lembrou-me um coelho que minha mãe fez, aproveitando uma meia branca. Lembrou-me as brincadeiras infantis de décadas passadas. Obrigado. Parabéns e votos de saúde à verdadeira Bornata.

    ResponderExcluir
  6. Parabéns pra sua mãe, Conceição! Um grande abraço pra ela. E viva tbm a Bornata e suas aventuras!

    ResponderExcluir
  7. Encantada. Toda criança deveria ler essa estória. Ela mostra o qto uma infância s tecnologia pode ser incrível, criativa e linda. Meu sonho era ter uma boneca de papelão. Qdo ganhei uma, fiquei deslumbrada. Aí meu irmão falou p eu colocar a boneca p nadar em um tanque. Eu o fiz. Nós ficamos na ponta dos pés olhando. Até q vi pedaços d papel na água. Nesse momento meu irmão sumiu e eu fui p casa chorando demais. Achava lindas essas bonecas. Sua estória me fez voltar em um tempo bem distante. Bj no coração!

    ResponderExcluir
  8. Lindíssimo! Vou compartilhar!
    Parabéns à Conceição!

    ResponderExcluir
  9. Encantada com tanta delicadeza. Parabéns a todos que preservam a memória!

    ResponderExcluir
  10. Que lindo conto da Bornata! Então, dia 28/10 será o seu aniversário, tenho um presente para ela, o doce de laranja-da-terra que tanto gosta, ok?

    ResponderExcluir
  11. Que belo exemplo!
    A verdadeira BORNATA completou 90 anos de vida e nos ensina até hoje, como um simples brinquedo pode mudar a realidade, a vida!

    ResponderExcluir

Os comentários neste blogue são moderados.