sábado, 7 de setembro de 2019

A redescoberta

Regina Marinho
Cadeira n.º 6




As caixas foram todas dispostas no chão da sala do diretor. Chegaram à penitenciária  endereçadas a ele, presidiário em Shawshank, juntamente com um bilhete. Eram a resposta tardia à sua solicitação de verba para reforma e ampliação da biblioteca do presídio. O bilhete lhe informava que o Estado do Maine destinara uma verba para o projeto da biblioteca, cuja ordem de pagamento, no valor de duzentos dólares, seguia anexada. As caixas continham livros, discos e outros objetos usados doados pela Biblioteca Nacional.
Surpreso, Andy ouve e responde afirmativamente à ordem do capitão, de levar, imediatamente, todas as caixas para a biblioteca. Assim que o capitão se retira, o guarda Wiley, que não conseguira esconder sua satisfação, parabeniza-o. Tomado de alegria, Andy ironiza: "foram só seis anos!! Agora vou escrever duas cartas por semana em vez de uma!" Wiley não duvida, diz que vai ao banheiro e que, na volta, não quer ver mais nada ali.
Quando se vê sozinho, Andy não tem pressa. Ele se dá o tempo de estar ali para contemplar o que não veio de graça, por boa intenção do doador. Tudo aquilo viera para por fim ao incômodo que ele, remetente teimoso, inconveniente e sem cansaço, havia causado com suas 288 cartas, aproximadamente, enviadas à assembleia do Estado.
Diante da caixa de discos, Andy passa os primeiros álbuns até que um lhe chama imediatamente a atenção. Ele o põe na vitrola pra tocar. Uma belíssima melodia preenche o recinto. É a Canzonetta sull'aria das Bodas de Fígaro, de Mozart, um belíssimo dueto de vozes femininas. O guarda Wiley, sentado no vaso sanitário, se assusta quando ouve a música e pergunta a Andy o que está havendo. Ele não responde, pois uma ideia iluminada já lhe ocorrera. Estava tudo ali, à sua mão. Mais que depressa, tranca a porta do banheiro pelo lado de fora e também a porta da sala onde está. Depois disso, liga a saída de som para o alto-falante do pátio externo e  também das outras instalações da cadeia, de forma que o som retumbe pelos ares e alcance os ouvidos de cada detento que está tomando sol, dos que estão nos outros recintos do presídio ou nas camas da enfermaria. Presos, guardas, enfermeiros e demais funcionários levam o olhar numa mesma direção, ouvidos atentos e invadidos pela surpreendente música, coisa jamais ouvida ali. A cena é linda com a música a lhe dar alma!!! Numa tomada que parte de baixo para cima, a câmera vai em direção à fonte do som, no topo de um poste, focalizando os homens no pátio, todos paralisados, em êxtase. Nesse momento, ouve-se a fala do narrador da história, Red, também prisioneiro. “Até hoje não sei o que aquelas mulheres italianas estavam cantando… Na verdade, nem quero saber. Certas coisas é melhor que não sejam ditas. Imagino que cantassem uma coisa tão bonita que não podia ser expressa em palavras e faz seu coração doer por causa disso. Só sei que aquelas vozes voaram mais alto e mais longe do que alguém ali poderia sonhar. Foi como se um lindo pássaro invadisse nossas jaulas e fizesse ruir todas aquelas paredes. E por um momento muito breve todos os presos de Shawshank se sentiram livres”.
Quando o diretor do presídio chega, furioso, o intento de Andy já se cumpria. Com os pés sobre a mesa, o rosto sereno, braços dobrados para trás e mãos entrelaçadas sob a nuca, parecia que sua sorte já era outra, que a esperança já lhe tivesse trazido a liberdade. O diretor ordena que Andy desligue imediatamente o som. Ele sente o peso da ordem, sai de sua posição, mas reacende a coragem. Em vez de desligar o som, olha nos olhos do mandatário e aumenta o volume. Depois disso, Andy fica preso na solitária por duas semanas. Quando sai, os colegas perguntam-lhe se o que fizera tinha valido a pena. “Mozart me fez companhia”, ele disse. “Deixaram você levar o toca-discos?”, alguém pergunta. “Ele está aqui (aponta para a cabeça) e aqui (aponta para o coração). Essa é a beleza da música: Ninguém tira isso de você. Nunca sentiram isso?”.
A cena acima, narrada por mim de forma muito pessoal, é parte do filme Um sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption), baseado na novela Rita Hayworth and Shawshank Redemption, de Stephen King. No filme, dois personagens de peso se destacam: Andy (Tim Robbins), possivelmente o único prisioneiro inocente a cumprir pena em Shawshank, e Red (Morgan Freeman), o narrador do filme.
Creio que a inteligência de Andy seja seu atributo mais evidente, pois é seu passaporte para a liberdade. No entanto, esta cena, especialmente, revela atributos de um homem que não se priva da beleza e da emoção, que não se deixa embrutecer pela dura rotina de agressões ou pelos vinte injustos anos de reclusão. Andy é um homem que mantém viva sua esperança e que deseja, ardentemente, a liberdade, mas, enquanto está ali, sabe se fazer igual, ser companheiro, ser solidário, partilhar conhecimentos e buscar melhores condições de vida para todos. Ele provoca as mais significativas transformações no presídio, enquanto instiga, nos companheiros, as transformações internas. Red, o narrador, observador atento e igualmente sensível, é capaz de perceber a delicadeza, a generosidade e a inteligência de Andy. Torna-se seu amigo mais próximo e fiel confidente. E será essa amizade capaz de reacender em Red a chama quase apagada da esperança.
Fico pensando que este filme, e particularmente esta cena, tem muito a nos ensinar sobre solidariedade, empatia, coragem, sem esquecer a beleza, a ternura, a delicadeza e a amizade. Tudo isso nos falta nos tempos atuais, em que deixamos de ser solidários, ternos, gentis e empáticos, simplesmente por intolerância ao pensamento divergente, numa época de extremadas opiniões políticas.
Creio que somos todos mais prisioneiros que os detentos de Shawshank. A fictícia penitenciária é muito real aqui do lado de fora, onde seguimos presos a nossos preconceitos, opiniões, verdades e certezas absolutas. Certezas que reduzem nossa capacidade de amar e não deixam espaço para acolhimento e aprendizado. Quem tudo sabe, nada aprende. Há esperança para nós?
O filme mostra que a esperança, coisa perigosa, no dizer de Red, é também poderosa, no agir de Andy. A esperança nos revela o que já temos, embora não saibamos: “há algo dentro de nós que ninguém pode tocar”. Reencontrar este espaço, escondido e acessível, cujo estreito acesso impede que levemos qualquer excesso, nos fará deixar nossos pesados fardos, aos quais vivemos apegados por tanto tempo: nossas certezas irrefutáveis, nosso ponto de vista indiscutível, nosso saber incomparável. Redescobriremos que a leveza do ser não carece de nada que a sustente, que liberdade não é algo que se tenha ou não, como bem que se conquista. A liberdade existe, como condição essencial em nós, desde sempre. E sua finalidade não é outra senão amar.
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Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption) - EUA - 1994
Direção: Frank Darabont
Elenco: Tim Robbins, Morgan Freeman, Bob Gunton e outros
Duração: 142 minutos
Produção: Columbia Pictures/Castle Rock

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Que linda conclusão: "A liberdade existe, como condição essencial em nós, desde sempre. E sua finalidade não é outra senão amar". Parabéns por
    sua sensibilidade e obrigado por sua generosidade em compartilhá-la.

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