Regina Marinho
Cadeira n.º 6
As caixas foram
todas dispostas no chão da sala do diretor. Chegaram à penitenciária endereçadas a ele, presidiário em Shawshank,
juntamente com um bilhete. Eram a resposta tardia à sua solicitação de verba
para reforma e ampliação da biblioteca do presídio. O bilhete lhe informava que
o Estado do Maine destinara uma verba para o projeto da biblioteca, cuja ordem
de pagamento, no valor de duzentos dólares, seguia anexada. As caixas continham
livros, discos e outros objetos usados doados pela Biblioteca Nacional.
Surpreso, Andy
ouve e responde afirmativamente à ordem do capitão, de levar, imediatamente,
todas as caixas para a biblioteca. Assim que o capitão se retira, o guarda
Wiley, que não conseguira esconder sua satisfação, parabeniza-o. Tomado de
alegria, Andy ironiza: "foram só seis anos!! Agora vou escrever duas
cartas por semana em vez de uma!" Wiley não duvida, diz que vai ao
banheiro e que, na volta, não quer ver mais nada ali.
Quando se vê
sozinho, Andy não tem pressa. Ele se dá o tempo de estar ali para contemplar o
que não veio de graça, por boa intenção do doador. Tudo aquilo viera para por
fim ao incômodo que ele, remetente teimoso, inconveniente e sem cansaço, havia
causado com suas 288 cartas, aproximadamente, enviadas à assembleia do Estado.
Diante da caixa
de discos, Andy passa os primeiros álbuns até que um lhe chama imediatamente a
atenção. Ele o põe na vitrola pra tocar. Uma belíssima melodia preenche o
recinto. É a Canzonetta sull'aria das
Bodas de Fígaro, de Mozart, um belíssimo dueto de vozes femininas. O guarda
Wiley, sentado no vaso sanitário, se assusta quando ouve a música e pergunta a
Andy o que está havendo. Ele não responde, pois uma ideia iluminada já lhe
ocorrera. Estava tudo ali, à sua mão. Mais que depressa, tranca a porta do banheiro
pelo lado de fora e também a porta da sala onde está. Depois disso, liga a
saída de som para o alto-falante do pátio externo e também das outras instalações da cadeia, de
forma que o som retumbe pelos ares e alcance os ouvidos de cada detento que
está tomando sol, dos que estão nos outros recintos do presídio ou nas camas da
enfermaria. Presos, guardas, enfermeiros e demais funcionários levam o olhar
numa mesma direção, ouvidos atentos e invadidos pela surpreendente música,
coisa jamais ouvida ali. A cena é linda com a música a lhe dar alma!!! Numa
tomada que parte de baixo para cima, a câmera vai em direção à fonte do som, no
topo de um poste, focalizando os homens no pátio, todos paralisados, em êxtase.
Nesse momento, ouve-se a fala do narrador da história, Red, também prisioneiro.
“Até hoje não sei o que aquelas mulheres italianas estavam cantando… Na
verdade, nem quero saber. Certas coisas é melhor que não sejam ditas. Imagino
que cantassem uma coisa tão bonita que não podia ser expressa em palavras e faz
seu coração doer por causa disso. Só sei que aquelas vozes voaram mais alto e
mais longe do que alguém ali poderia sonhar. Foi como se um lindo pássaro
invadisse nossas jaulas e fizesse ruir todas aquelas paredes. E por um momento
muito breve todos os presos de Shawshank se sentiram livres”.
Quando o diretor
do presídio chega, furioso, o intento de Andy já se cumpria. Com os pés sobre a
mesa, o rosto sereno, braços dobrados para trás e mãos entrelaçadas sob a nuca,
parecia que sua sorte já era outra, que a esperança já lhe tivesse trazido a
liberdade. O diretor ordena que Andy desligue imediatamente o som. Ele sente o
peso da ordem, sai de sua posição, mas reacende a coragem. Em vez de desligar o
som, olha nos olhos do mandatário e aumenta o volume. Depois disso, Andy fica
preso na solitária por duas semanas. Quando sai, os colegas perguntam-lhe se o
que fizera tinha valido a pena. “Mozart me fez companhia”, ele disse. “Deixaram
você levar o toca-discos?”, alguém pergunta. “Ele está aqui (aponta para a
cabeça) e aqui (aponta para o coração). Essa é a beleza da música: Ninguém tira
isso de você. Nunca sentiram isso?”.
A cena acima,
narrada por mim de forma muito pessoal, é parte do filme Um sonho de Liberdade
(The Shawshank Redemption), baseado
na novela Rita Hayworth and Shawshank Redemption, de Stephen King. No
filme, dois personagens de peso se destacam: Andy (Tim Robbins), possivelmente
o único prisioneiro inocente a cumprir pena em Shawshank, e Red (Morgan
Freeman), o narrador do filme.
Creio que a
inteligência de Andy seja seu atributo mais evidente, pois é seu passaporte
para a liberdade. No entanto, esta cena, especialmente, revela atributos de um
homem que não se priva da beleza e da emoção, que não se deixa embrutecer pela
dura rotina de agressões ou pelos vinte injustos anos de reclusão. Andy é um
homem que mantém viva sua esperança e que deseja, ardentemente, a liberdade,
mas, enquanto está ali, sabe se fazer igual, ser companheiro, ser solidário,
partilhar conhecimentos e buscar melhores condições de vida para todos. Ele
provoca as mais significativas transformações no presídio, enquanto instiga,
nos companheiros, as transformações internas. Red, o narrador, observador
atento e igualmente sensível, é capaz de perceber a delicadeza, a generosidade
e a inteligência de Andy. Torna-se seu amigo mais próximo e fiel confidente. E
será essa amizade capaz de reacender em Red a chama quase apagada da esperança.
Fico pensando que
este filme, e particularmente esta cena, tem muito a nos ensinar sobre solidariedade,
empatia, coragem, sem esquecer a beleza, a ternura, a delicadeza e a amizade.
Tudo isso nos falta nos tempos atuais, em que deixamos de ser solidários,
ternos, gentis e empáticos, simplesmente por intolerância ao pensamento
divergente, numa época de extremadas opiniões políticas.
Creio que somos
todos mais prisioneiros que os detentos de Shawshank. A fictícia penitenciária
é muito real aqui do lado de fora, onde seguimos presos a nossos preconceitos,
opiniões, verdades e certezas absolutas. Certezas que reduzem nossa capacidade
de amar e não deixam espaço para acolhimento e aprendizado. Quem tudo sabe,
nada aprende. Há esperança para nós?
O filme mostra
que a esperança, coisa perigosa, no dizer de Red, é também poderosa, no agir de
Andy. A esperança nos revela o que já temos, embora não saibamos: “há algo
dentro de nós que ninguém pode tocar”. Reencontrar este espaço, escondido e
acessível, cujo estreito acesso impede que levemos qualquer excesso, nos fará
deixar nossos pesados fardos, aos quais vivemos apegados por tanto tempo:
nossas certezas irrefutáveis, nosso ponto de vista indiscutível, nosso saber
incomparável. Redescobriremos que a leveza do ser não carece de nada que a
sustente, que liberdade não é algo que se tenha ou não, como bem que se
conquista. A liberdade existe, como condição essencial em nós, desde sempre. E
sua finalidade não é outra senão amar.
______________________________Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption) - EUA - 1994
Direção: Frank Darabont
Elenco: Tim Robbins, Morgan Freeman, Bob Gunton e outros
Duração: 142 minutos
Produção: Columbia Pictures/Castle Rock
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue linda conclusão: "A liberdade existe, como condição essencial em nós, desde sempre. E sua finalidade não é outra senão amar". Parabéns por
ResponderExcluirsua sensibilidade e obrigado por sua generosidade em compartilhá-la.