terça-feira, 15 de outubro de 2019

“Farta de paper!”

Conceição Cruz
Cadeira n.º 4



Ele se aproximou, timidamente, da mesa.
A estudante de Direito estendeu-lhe a mão.
_Bom dia! Eu sou Maria. Qual o nome do Senhor? Em que posso ajudá-lo?
O senhor já idoso, magro, roupas zurradas e poídas, tirou  o chapéu para responder ao cumprimento.
_Eu sou o Zé!Trabaio na roça e vim aqui procê arrumá a minha posentadoria.
Falava, enquanto comprimia o chapéu no peito.
Maria olhou a pele dele queimada e maltratada pelo sol, enquanto apertava as suas mãos calejadas.
_Certo, Sr José. Preciso de alguns documentos e de fazer-lhe algumas perguntas, tudo bem?
_Num tenho dicumento não sinhora. Nunca assinaron a minha cartera de trabaio, não. Sô sei iscrivinhá o meu nome prá votá. Eu num sei fazê lei não! Es que faz lei e num sabe prantar nem um pé de cove prá cumê, num sabi tumem quantos bagos tem uma ispiga de mio, nem quantos grãos tem na cova de fijão querem mexer na nossa posentadoria? Esse povo tem muita letra e poco conhecimento da vida, num é memo? Eu, mia fia, num tenho letra não mais  tenho o maió orguio de dizê: na roça, nasci, cresci, vivi, casei, tive fios… mais, o tal dicumento, que iscrivinharon na tar de lei, num tenho não, sinhora. Pode pringuntá prá quarquer um lá na roça: já trabaei p quase todo mundi lá. Já fui no INS: falaron que num tenho direito por farta  de um tar de indício de prova materiar!  Eu trabaiei e trabaio de sor a sor: desde que intendu por gente, ajudava o pai na roça. Cresci, casei e trabaio prá sustentá a famia. Já fiz cerca, apartei vaca, busquei boi no pasto, cortei lenha, cuí ovo, tirei leite, prantei mio, arrois, fijão, batata, cuidei da roça e num tive tempo de ir prá iscola, nem  prá curti doença e dor não, senão as prantas,  as criação, a famia e eu morria… Eu e mia muié tivemo muitos fios… O iscrivão num inscrivinhó nem a minha profissão, nem a da minha muié nas certidão de nascimento dos nosso fios não.
Quem sabe iscrevé e divia iscrivinhá, num iscrivinhó e agora, mia fia, na hora de posentá, quem paga o pato sou eu? Já vivi e trabaiei  muito: vinci a seca, a inundação e já estou desceno o morro! Agora, num tó dano conta mais não, sá! Por isso vim aqui mode ocê mim ajudá.

A estudante de direito, a ouvir a estória de vida, olhava o não dito, mas escrito, naquelas rugas que acrescentavam mais anos àquele rosto, os calos montanhosos daquelas mãos, a boca quase toda desdentada, a pele fustigada anos a fio pelo sol… Ela não tinha dúvida de que, em busca do merecido descanso, cansado, sem estudos,  quase no fim da vida, começaria ali, na busca da aposentadoria rural, a mais extensa via crucis do Senhor José!

14 comentários:

  1. Que história bacana, Conceição!!! Gostei demais e fico pensando em quantos Zés e Marias há nesta mesma situação. Que a gente possa fazer a nossa parte em favor deles. Beijos, Regina Maria

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  2. Essa via sacra é de muitos trabalhadores do Brasil... bem atual a "FARTA DE PAPER"
    Parabéns a escritora
    Alexandre Magnus de Juiz de Fora

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  3. Realmente você conseguiu - por meio de seu olhar sempre sensível às causas sociais - captar a realidade... De fato, há um hiato muito grande entre a vida no campo e a legislação , quanto ao trato da aposentadoria.Lamentável...

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  4. Que mais pessoas como seu Zé possa conseguir a aposentadoria desejada, estes trabalham muito e merecido,ainda bem existem pessoas como desse seu conto lindo!!!

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  5. Que bonito, compartilho do sentimento de a amiga, quantos Zés existem e quantos trabalham para chegar alimento até nossas mesas.
    Bonito trabalho amiga.
    Com carinho, Talita

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  6. Milhares de seus zes por aí. Com os diplomas, os registros e as patentes na pele, nas rugas e no olhar...

    Múcio Ataide

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  7. Resumindo esse povo tem muita ganância e menos amor no próximo.só pensam no bem estar deles Parabéns Conceição pelo belo trabalho.
    Mauro Sérgio e família

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  8. Parabéns pelo texto que retrata a realidade da maioria da nossa gente, lamentavelmente. Triste ver nossa sofrida gente chegar nesse momento crucial da vida,e, depois de tanta luta se deparar com exigências tão descabidas às suas condições.Muito doloroso!!!

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  9. Muito bonito a história e a verdade da grande maioria do povo que trabalha na roça

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  10. E a verdade de muitos trabalhadores rurais

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  11. Parabéns Conceição.
    Muitos Zés ainda existem por aí e quem dera se ainda existesem também muitas Marias como está do texto atenciosa carinhosa aquela que pega nas mãos dos Zés olha seu calos

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