sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Cidadania e Justiça

 

Conceição Cruz
Cadeira n.º 4



Ao revisar os meus arquivos literários, tive a grata alegria de encontrar esta reflexão, escrita há duas décadas (pouco depois do FGTS tornar-se facultativo para os domésticos).


“CIDADANIA E JUSTIÇA” -  EM UMA RELEITURA DE nossas histórias infantis

 

Em "Leituras", Pontes de Miranda assim dizia “A Natureza, como os livros, deixa aos leitores a mais plena liberdade de interpretação. Pouco lhe importa que tresleiam, ou que deem às suas paisagens um sentido além do que elas significam. E assim se tornaram possíveis os sentimentos, as ideologias” [1].

Construímos um repositório de ideias ao decorrer dos anos.  Algumas acreditamos serem corretas outras...  Nós, enquanto operadores jurídicos, estudantes do Direito, percebemos que muitos conceitos de Bem, Mal, Justo, Injusto etc. já se apresentam nos contos infantis. Será fantasia? Os contos apenas divertem ou formam consciência? Vamos construindo pontes!

Minha proposta é apresentar um olhar expedito sobre algumas destas histórias, das quais muitas vezes, a vida imita a arte! E dessa forma, assim vamos edificando ideias e ideais!

a) Quem não se lembra do sapatinho de cristal, perdido em uma escada, numa grande festa, enquanto soavam as 12 badaladas da meia-noite? Aquele sapato encontrado por um príncipe, percorreu todos os pés femininos do reino. Alguns pés desavisados, tentaram se acomodar ali. Não ficaram confortáveis. Não couberam Direito. 

Mas o que é Direito? No caso do sapato, ele só ficaria confortável se estivesse em conformidade com o pé certo! Mas, só caberia em um e apenas um pé! Justamente!

Aí está o conceito de Justiça.  O que é Justiça?  Aquilo que é exato, certo, perfeito!  Decorre então que o Direito deve estar em conformidade com a Justiça.

b) E aquel’outra com casa de chocolates, biscoitos, balas, comidas? E crianças enjauladas?

Não estaria aí o conceito de obter? E o que é obter? OB = OBRA. Ter. Pressupõe trabalho. Trabalhar para ter! O quê? Comida! Casa! Você cotidianamente preso ao trabalho para... quê?

c) A madrasta que trata de forma diferenciada suas filhas. Direito de Família ou Direito do Trabalho? A enteada trabalha, trabalha. Sendo todas filhas, para que o tratamento diferenciado? Trabalho doméstico. Relação de grande confiança. Agora o FGTS passou a ser opcional.  O ordenamento jurídico permite ofertar menos direitos a quem você mais confia ou pelo menos entrega a sua casa, os seus bens e até mesmo os seus filhos (que você acredita amar tanto!)!  Que “amor” é esse? Esta é a nossa sociedade! Este é o nosso... Direito?!

d) E o cisne que um dia “fora” um pato? Não estaria aí a questão dos grupos sociais, da isonomia, de saber respeitar as diferenças? A Harmonia não estaria no conjunto de todas as formas, onde os diferentes se compõem? E os iguais se auto compõem? Dissídio Individual?  Categoria? Sindicato? Dissídio Coletivo? Tudo refletido no lago social?

Os tempos são outros!  Falo de velhas histórias! São histórias do passado.

E hoje?  Acabamos de vivenciar aquela tradicional e que, repetidamente, todos os anos, reforçamos.

e) É o nosso bom velhinho que aparece todos os fins de ano vestido de vermelho! Dizem que no princípio era São Nicolau. Depois, uma grande empresa, quis associar a imagem de seu produto a este bom doador! Passamos a ter um São Nicolau de manto vermelho colorindo a festa da “Natividade”, regada a ... 

“Assim as empresas multinacionais reforçam o Estado da matriz” (...) Celso D. De Albuquerque Mello, na mesma obra diz: “Octávio Ianni (A Sociedade Global, 1992) observa que com a ‘globalização do capitalismo’ através das empresas está ocorrendo na sociedade internacional em que há uma perda da importância do território e, em consequência, da noção de fronteira. Acresce ainda que tem sido observado que a sociedade internacional atravessa uma fase de globalização de sua economia que é realizada por atores não estatais (empresas transnacionais) e, por outro lado, tem havido uma forte tendência à regionalização cujo ator é o Estado”. [2]

Qual a cor do Natal para você? Se não tiver vermelho não é Natal?  Com certeza na sua mesa também tem Peru! Adivinhar a marca?  Hum!...

Não fique triste. È só uma questão de Direito Comercial e até Internacional. De Consumidor, talvez!

f) Aquele gigante que tem a sua galinha subtraída enquanto dormia! Subtrair coisa alheia móvel para si ou para outrem.  Está escrito! E aqui hoje não se premia. É conduta punível!

g) O espelho que fala! E compara! Vaidades! Aquela que sempre lhe faz perguntas prepara a maçã envenenada que quase mata a nossa doce heroína!... A intriga, a inveja infundada, a língua não refreada... Não estaria aí o motivo torpe, fútil, o “homicídio” premeditado?

Que sociedade queremos construir? Que tipo de cidadania? Depois, queremos punir os adultos! Antigamente, ao final, via-se a “moral da história!” (resquício da forma ditatorial?) Temos inúmeras! Quantas realmente falam de Verdade, Igualdade, Justiça, Liberdade e Paz no sentido lato dessas palavras? Quantas não embutem a violência?

Às vezes, ouvimos sempre a mesmíssima versão. Quem conhece “O Diário do Lobo – A verdadeira História dos Três Porquinhos?”  Hora do contraditório e da ampla defesa!

A criança está atenta: ora vendo os “desenhos animados”, ora os joguinhos do computador!

Jogos! Uma das melhores formas para o aprendizado! Repetidas vezes!

Rachel de Queiroz, com grande perspicácia observa: “E hoje, esses seriados japoneses da TV? As crianças os acompanham avidamente e eles são terríveis. Não só pelos monstros apavorantes, como pelas crudelíssimas proezas dos mocinhos, que usam mil maneiras de matar (...) E as crianças ficam vendo sem piscar o olho, algumas até torcem pelos vilões todo-poderosos. No fundo, elas acreditam que na realidade ninguém morre; tudo e todos são recuperáveis, nunca as vi chorar um herói, uma heroína mortos. E depois, há ainda o hábito. A presença constante de cenários aterrorizantes nos jornais e na TV embota as emoções até nos adultos, que sabemos de experiência própria quanto a vida e mundo são realmente cruéis” (grifei). [3]  

Como já foi dito: “existirmos, a que será que se destina?”  Que queremos ver no futuro? E as nossas crianças? Com todo nosso cabedal de conhecimentos, o que mudou? Ou “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos Pais?” Nossa responsabilidade ao deixarmos as nossas crianças à mercê de livros, revistas, filmes, fitas é enorme. Às vezes, o que impera nos desenhos é “olho por olho, dente por dente!” Doutra face, muitas daquelas velhas histórias exercem um fascínio muito grande sobre as pessoas. São histórias eternas. Por quê? É possível fazer “n” análises...

Exupéry conta-nos a história de um príncipe que cuida de uma flor (e descobre outras tantas tão importantes quanto aquela!). Não seria esta a melhor definição de cidadão? Alguém com uma consciência universal? Cidadão do Mundo?   Não está na hora de começarmos a construir a nossa cidadania a partir da infância? De repensarmos não só o nosso modelo social, jurídico, mas também as nossas “mais belas histórias”? Tal qual o Direito, evoluir: sair do individual para o difuso!  Unir o agradável ao útil? 

Lembre-se: Justiça é igual à história do sapato. É exata. Nem mais, nem menos. Se permitirmos que a violência chegue às nossas crianças _ muitas vezes ainda mal falam_ que Sociedade iremos construir?  Afinal, a nossa “Justiça” espelha exatamente as ideias que propagamos e nutrimos! Estamos realmente cuidando? Quais são as suas opções? Dentro da sua casa, no seu doce lar: a que tipo de programa de TV seus filhos assistem? E os jogos_ fomentam quais sentimentos? Que tipo de leitura eles fazem? Dos textos? Da vida? Ou apenas: “Pouco lhe importa que tresleiam, ou que deem às suas paisagens um sentido além do que elas significam?” (Pontes, em "Leituras”) ... construa!



Notas:

[1] Pontes de Miranda, Obras Literárias, Prosa e Poesia, Livraria  José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1960, 1ª edição., pág. 70 (in Leituras).

[2] Mello, Celso D. De Albuquerque (Celso Duvivier de Albuquerque), 1937, _ Curso de direito internacional público/Celso D. De Albuquerque Mello, prefácio de M.  Franchini Netto à 1.ed. (ver. e aum.) _ Rio de Janeiro Renovar, 1997

[3] Queiroz, Rachel de, 1910- Falso Mar, Falso Mundo/Rachel de Queiroz. _ São Paulo: Arx, 2002, in “As crianças e a crueldade do mundo”, págs. 83/85.

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