sábado, 4 de maio de 2019

O pai, o relógio e o tempo


Regina Marinho
Cadeira n.º 6




“Naquela mesa tá faltando ele, e a saudade dele tá doendo em mim”.
Quem não conhece essa música escrita por Sérgio Bittencourt para seu pai, Jacob do Bandolim? Sempre gostei demais dela, especialmente da letra. Nela, Sérgio conta como era festiva a rotina de seu pai, que juntava os filhos à volta para falar do ordinário da vida e contar histórias. As histórias contadas por seu pai ficariam guardadas, para sempre, na sua memória de filho. Com a morte do pai, revela-se uma dor desconhecida. A mesa, a casa e o jardim, lugares da presença paterna, viram resto, desimportâncias. Deixa de ser bom e prazeroso estar neles. Especialmente o bandolim, símbolo do talento e da pertença do pai, torna-se um instrumento esquecido, do qual ninguém mais fala. Essa intensa dor experimentada, até então ignorada, deixa no filho a crença de ser ela menos doída, se sabida já fosse.
Muito tempo se passou, desde que ouvi essa canção pela primeira vez. A cada vez que a ouvia, a assombrosa expectativa do indesejo era trazida numa imagem. Trazida, para bem perto e a espreitar, a dor do viver na descoberta da finitude. Saber dessa dor, que cedo ou tarde chegaria, não nos fez mais fortes. Dia e hora chegaram. A morte de meu pai pegou-nos sem surpresa, entristecidos, impotentes, vivendo o luto antes do adeus. Não era mais a dor trazida para perto. Era a nossa dor de dentro, entranhada no corpo e na alma.
Mas não paramos nela. Fomos além. O que nos coube fazer, fizemos. Presos às condições impostas, levamos nosso amado pela mão, até o limiar de onde ele seguiria sozinho. O toque, o beijo, o sopro quente do respiro, palavras de coragem e gratidão ao pé do ouvido. Isso foi o que demos àquele que tanto nos deu. Esse pouco que tínhamos, hoje eu creio, fez toda a diferença.
Já se disse entre nós que a “saudade é o amor que fica”. Hoje, lá em casa, sabemos que o amor ficou. Os lugares de meu pai na casa, a mesa, o sofá, a cadeira estão cheios de presença. Aprendemos a chorar de alegria e gratidão. A saudade não dói tanto. E, como o bandolim, um objeto, especialmente, tem a marca de meu pai. Não se trata de um instrumento musical, embora seja sonoro. É o relógio de parede em caixa de madeira, com ponteiros e pêndulo. Impossível vê-lo sem se lembrar das mãos de meu pai a dar a corda, ato quase sagrado de reverência e extremo zelo. Nem mais, nem menos corda. Somente o suficiente. Qualquer giro além romperia o encordoamento.
Nunca imaginei que este relógio pudesse encher de presença os espaços esvaziados da casa. Em cada canto dela, ouve-se o seu badalar. Dentro da caixa de madeira estava todo o nosso tempo. Papai sabia da importância de mantê-lo em movimento. Dar a corda ao relógio era dar o tempo a nós. Dar-nos os dias, as horas, minutos, segundos, cada fraçãozinha do tempo. Esse ritual ele cumpria a cada semana, religiosamente, para marcar nossa rotina, nosso ritmo, nossa vida.
Em sua memória, pai, cumprimos hoje este mesmo ritual. Para nós, é seu coração que pulsa nas batidas do relógio. E a cada dia, temos novas horas, minutos, segundos. Temos o tempo de agradecer por sua vida nas nossas vidas.

12 comentários:

  1. Tia Regina, seus sentimentos postos no papel também nos faz lembrar de nossos pais. Detalhes que conferimos a cada um, fazem parte de nossas vidas. Obrigado por me acordar para detalhes nos detalhes de seu Pai. Muito lindo e emocionante. Beijão

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  2. Abraço, querida. Existem coisas sacramentais. Ficam mesmo para todo o sempre.Convivem com saudade. Em harmonia.

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  3. Profundo, intenso... real. Parabéns, minha amiga!

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  4. Que lindeza...!! Estamos cheios da presença dele. E a vida se faz presente, na grandeza das pequenas coisas!

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  5. Lindo, Regina! Delicado, intenso, verdadeiro. Como você trabalha bem as palavras, com maestria! Lindo texto, homenagem merecida!

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  6. O ritual de dar a corda. O badalar do relógio marcando o tempo. Tudo a dar o ritmo em sintonia com o bater de nosso próprio coração, se eternizando.

    Parabéns amor! Que lindo!

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