Regina Marinho
Cadeira n.º 6
“Naquela mesa tá faltando ele, e a saudade dele
tá doendo em mim”.
Quem não conhece essa música escrita por Sérgio
Bittencourt para seu pai, Jacob do Bandolim? Sempre gostei demais dela,
especialmente da letra. Nela, Sérgio conta como era festiva a rotina de seu
pai, que juntava os filhos à volta para falar do ordinário da vida e contar
histórias. As histórias contadas por seu pai ficariam guardadas, para sempre,
na sua memória de filho. Com a morte do pai, revela-se uma dor desconhecida. A
mesa, a casa e o jardim, lugares da presença paterna, viram resto,
desimportâncias. Deixa de ser bom e prazeroso estar neles. Especialmente o bandolim, símbolo
do talento e da pertença do pai, torna-se um instrumento esquecido, do qual
ninguém mais fala. Essa intensa dor experimentada, até então ignorada,
deixa no filho a crença de ser ela menos doída, se sabida já fosse.
Muito tempo se passou, desde que ouvi essa canção
pela primeira vez. A cada vez que a ouvia, a assombrosa expectativa do indesejo
era trazida numa imagem. Trazida, para bem perto e a espreitar, a dor do viver
na descoberta da finitude. Saber dessa dor, que cedo ou tarde chegaria, não nos
fez mais fortes. Dia e hora chegaram. A morte de meu pai pegou-nos sem
surpresa, entristecidos, impotentes, vivendo o luto antes do adeus. Não era
mais a dor trazida para perto. Era a nossa dor de dentro, entranhada no corpo e
na alma.
Mas não paramos nela. Fomos além. O que nos coube
fazer, fizemos. Presos às condições impostas, levamos nosso amado pela mão, até
o limiar de onde ele seguiria sozinho. O toque, o beijo, o sopro quente do respiro,
palavras de coragem e gratidão ao pé do ouvido. Isso foi o que demos àquele que
tanto nos deu. Esse pouco que tínhamos, hoje eu creio, fez toda a diferença.
Já se disse entre nós que a “saudade é o amor que
fica”. Hoje, lá em casa, sabemos que o amor ficou. Os lugares de meu pai na
casa, a mesa, o sofá, a cadeira estão cheios de presença. Aprendemos a chorar
de alegria e gratidão. A saudade não dói tanto. E, como o bandolim, um objeto,
especialmente, tem a marca de meu pai. Não se trata de um instrumento musical,
embora seja sonoro. É o relógio de parede em caixa de madeira, com ponteiros e
pêndulo. Impossível vê-lo sem se lembrar das mãos de meu pai a dar a corda, ato
quase sagrado de reverência e extremo zelo. Nem mais, nem menos corda. Somente
o suficiente. Qualquer giro além romperia o encordoamento.
Nunca imaginei que este relógio pudesse encher de
presença os espaços esvaziados da casa. Em cada canto dela, ouve-se o seu
badalar. Dentro da caixa de madeira estava todo o nosso tempo. Papai sabia da
importância de mantê-lo em movimento. Dar a corda ao relógio era dar o tempo a
nós. Dar-nos os dias, as horas, minutos, segundos, cada fraçãozinha do tempo.
Esse ritual ele cumpria a cada semana, religiosamente, para marcar nossa
rotina, nosso ritmo, nossa vida.
Em sua memória, pai,
cumprimos hoje este mesmo ritual. Para nós, é seu coração que pulsa nas batidas
do relógio. E a cada dia, temos novas horas, minutos, segundos. Temos o tempo
de agradecer por sua vida nas nossas vidas.
Tia Regina, seus sentimentos postos no papel também nos faz lembrar de nossos pais. Detalhes que conferimos a cada um, fazem parte de nossas vidas. Obrigado por me acordar para detalhes nos detalhes de seu Pai. Muito lindo e emocionante. Beijão
ResponderExcluirAbraço, querida. Existem coisas sacramentais. Ficam mesmo para todo o sempre.Convivem com saudade. Em harmonia.
ResponderExcluirVerade! Não deu pra saber quem é...
ExcluirVerdade! Não deu pra saber quem é.
ExcluirProfundo, intenso... real. Parabéns, minha amiga!
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirQue lindeza...!! Estamos cheios da presença dele. E a vida se faz presente, na grandeza das pequenas coisas!
ResponderExcluirObrigada, Nina!
ExcluirLindo, Regina! Delicado, intenso, verdadeiro. Como você trabalha bem as palavras, com maestria! Lindo texto, homenagem merecida!
ResponderExcluirObrigada, Alice! Grande incentivadora!
ExcluirO ritual de dar a corda. O badalar do relógio marcando o tempo. Tudo a dar o ritmo em sintonia com o bater de nosso próprio coração, se eternizando.
ResponderExcluirParabéns amor! Que lindo!
😘❤
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