sexta-feira, 6 de abril de 2012

A alma do livro


Na biblioteca escura, de corredores sujos e estreitos, livros nunca lidos, de autores desconhecidos, lançados e autografados em coquetéis com canapés, castanhas e vinho para os amigos – que só por amizade os compraram, doando-os depois para ganhar espaço nas gavetas e armários de suas casas apertadas –, enchem com suas lombadas de cores opacas as velhas estantes da cidade cinza, onde a ignorância e o orgulho reinam quase absolutos. Na biblioteca escura a poeira encobre vidas esquecidas, almas adormecidas que esperam o despertar, o toque de uma mão que as liberte do sono, o folhear que nas páginas impressas em tinta e sangue abra os portais de seus mundos distantes e luminosos. O folhear libertador, o lento passar dos olhos sobre as letras e frases, mundos que no escuro pulsam de alegria e dor e que por magia renascem com a leitura e aos poucos recobram a força da vida que os criou. Terra, cimento e mármore não calam a voz do escritor que deixou sua alma ali na biblioteca escura, sem ser lida, coberta de poeira, esperando, sua voz à espera do olhar que a liberte, e ele vem, o olhar, um dia ele vem, e o passado renasce, recria-se naquele que olha e sente, e a vida se renova com a voz do que passou e do que é eterno, e as almas se encontram no leitor que apreende e recebe o texto vida que nunca morre. Mesmo esquecido e não lido, enfiado na estante empoeirada da biblioteca escura do reino da estupidez, o livro do autor nunca lido está vivo, à espera, a memória não se apaga, a indignação, a dor, a alegria, a alma lavada sofrida vivida não se apagam jamais do texto – estão lá, esquecidas, vivas, esperando...

Flávio Marcus da Silva - Cadeira nº 1

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